A igreja de São Bento vista da igreja de São Pedro, aos pés do monte Civate (30Giorni)
Arquivo 30Dias - 12/2003
Uma joia românica entre as
montanhas
São legendárias as origens da igreja de São Pedro
da Montanha, em Civate, no norte da Itália. Mais que os documentos, neste caso
são as pedras e afrescos que falam. É o caso da imagem dos anjos que, guiados
por Miguel, lutam contra o imenso dragão vermelho que queria se apossar do
filho recém-nascido da mulher vestida de sol, como se lê no capítulo 12
do Apocalipse.
de Giuseppe Frangi
O que
aquelas duas joias da arquitetura românica fazem lá em cima, sozinhas, no
côncavo aos pés do monte Pedale, sobre a planície lombarda e o lago de Anone?
Parece estranho, mas nem os historiadores nem os críticos de arte conseguiram
responder a essa questão. Ainda hoje, para chegar às duas igrejas, São Pedro e
São Bento, a 660 metros de altura, é preciso caminhar mais de uma hora, saindo
da pequena cidade de Civate, da qual o santuário tomou o nome. Um esforço
amplamente recompensado pelo espetáculo que se tem quando se tornam visíveis as
duas igrejas, cuidadosamente dispostas em meio ao verde das pradarias.
Mas quem e por qual motivo decidiu construí-las num lugar tão isolado? A lenda
conta que o rei lombardo Desidério quis erguê-las em agradecimento por um voto
respondido: seu filho Adelque, condenado por sacrilégio por ter matado um
javali que se refugiara sob o altar, fora punido com a cegueira. O pai implorou
a graça e, em sonho, foi-lhe anunciado que seu filho recuperaria a visão se ele
construísse uma igreja naquele lugar. E assim se deu, como conta, num latim já
vulgarizado, a Chronica mediolanensis, um manuscrito conservado na
Biblioteca Nacional de Paris. O manuscrito acrescenta um pormenor interessante:
Desidério teria também pedido relíquias ao papa Adriano, para que fossem
conservadas na igreja que estava construindo. Obteve nada menos que uma
relíquia de São Pedro, além de outra, do papa Marcelo (e a lenda confere, pois
o papa Marcelo é representado no afresco do século XII, logo na entrada da
igreja). Um documento de 845 é o primeiro atestado histórico da existência da
igreja de São Pedro. Dizem que ali vivia uma comunidade de 35 monges,
obedientes à regra beneditina: uma comunidade de tamanho razoável, que vivia
num edifício que hoje não existe mais. A notícia seguinte, do ano de 859 ou até
mais antiga, diz que o arcebispo de Milão Angiberto II, o mesmo que encomendara
o célebre altar de ouro para a Basílica Ambrosiana, mandou transportar de
Albenga a Civate três relíquias de São Calógeras, um mártir que viveu, ao que
parece, no século I. A ele é dedicada uma outra igreja antiga, com um mosteiro
anexo, na zona urbana do município de Civate.
Mas a data mais importante, que marca as fisionomias das igrejas de São Pedro e
São Bento, talvez seja 1097. Em setembro daquele ano morreu o arcebispo de
Milão Arnolfo III, sendo sepultado justamente em Civate: fora eleito à cátedra
milanesa em 1093, em circunstâncias pouco claras, tanto que sua nomeação
inicialmente foi invalidada pelo pontífice Urbano II. Arnolfo, à espera da
ratificação, retirou-se em oração a São Pedro da Montanha, em Civate, onde
permaneceu por dois anos, até que chegasse a confirmação de Roma. Esses
episódios atestam o apego do bispo à antiga sede monástica e confirmam as
hipóteses apresentadas pelos críticos de que seja exatamente esse o período dos
grandes trabalhos de ornamentação de São Pedro.
O altar afrescado na abside pequena da igreja de São Bento (30Giorni)
De fato, mais que os documentos, quem fala em
Civate são as pedras e, sobretudo, os afrescos e as decorações. Como já
dissemos, são duas igrejas. A primeira, pouco abaixo da segunda, é dedicada a
São Bento. Tem planta central, o que levou a pensar que fosse um batistério: na
realidade, nunca exerceu essa função, já que jamais se encontraram a fonte e os
canais de escoamento de água. Seja como for, dentro dela há um primeiro
aperitivo do que nos espera, logo acima, em São Pedro. O altar, na absidíola de
frente para quem entra, conserva afrescos em três de seus lados. Destaca-se em
particular, no lado direito, um São Bento de braços abertos. Num dos braços, o
santo segura a pastoral; no outro, o livro com a “legenda” da imagem: “Ego sum
Benedictus abas”.
Saindo da igreja e olhando para cima, somos acolhidos pela majestosa escadaria
de 23 degraus talhados de maneira bastante grosseira que sobe para São Pedro.
Aqui nos espera a primeira surpresa: a fachada de São Pedro é convexa, parece,
ou melhor, é uma abside, semelhante à da igreja de Passagem de São Pedro, em
Pisa, no lugar onde a tradição diz que São Pedro teria desembarcado. Além
disso, em torno da abside corre um pórtico que se abre para o vale com suas
elegantes bíforas. As razões dessa fascinante mas estranha fachada-abside estão
ligadas àquele ano de 1097 e à história do arcebispo Arnolfo III. Teria sido
ele quem modificou a igreja, invertendo sua orientação e levando o altar para a
montanha. A velha abside se tornou, assim, a nova fachada, e a cripta, por
baixo dela, mantendo a orientação originária, aparece hoje virada para a planta
da igreja.
Teria sido o mesmo Arnolfo III a convidar as extraordinárias corporações de
artistas que afrescaram e decoraram a igreja? A datação proposta, já há
cinqüenta anos, pelo maior estudioso da Idade Média lombarda, Pietro Toesca,
baseada no confronto de estilos, coincide com a que é sugerida pela história de
Arnolfo III. Estamos no início do século XI, anos ainda dominados pelas escolas
bizantinas. Um grande mestre certamente terá subido a Civate, entre outros
artistas. A ele é atribuída a grande cena pintada na luneta à entrada, que
ilustra o início do capítulo 12 do Apocalipse.
Mas, antes de chegar a esse ponto-chave, o fiel é chamado a um breve percurso
que começa com o afresco em cima da porta de entrada, onde Cristo entrega as
chaves e o livro a Pedro e Paulo, apóstolos de mãos veladas. Uma vez dentro da
igreja, vê-se, na primeira abóbada, a representação da Jerusalém celeste,
descrita como uma cidade luxuosa, fechada por 12 portões nos quais aparecem 12
anjos e os nomes das 12 tribos de Israel e dos 12 apóstolos. No centro, Cristo
segura nas mãos um livro no qual se pode ler em letras claras o convite: “Qui
sitit veniat”, venha quem tem sede. É uma referência ao rio que vai da montanha
aos pés do Salvador, derrama-se em quatro cursos d’água e conflui para os
quatro gomos da abóbada seguinte (onde cada um dos rios recebe um nome),
indicando o fato de que os Evangelhos são pregados em todos os cantos da terra,
como recuperou recentemente Lorenzo Cappelletti em seu livro dedicado aos
afrescos da cripta de Anagni, bastante próximos, do ponto de vista temático e
talvez até cronológico, dos afrescos de Civate. “Nos corações de pedra dos
gentios, Deus abriu os rios da pregação. [...] O que ouvimos ser prometido
vemos agora cumprido”: são palavra de Gregório Magno, que descrevem
perfeitamente o itinerário ilustrado aqui. Será um acaso que o próprio papa
Gregório, ao lado do papa Marcelo, tenha sido pintado numa das duas paredes estreitas
da porta de entrada, em gesto de acolhida dos fiéis? “Venite filii audite me,
timorem Domini docebo vos” (Vinde, filhos, ouvi-me, eu vos ensinarei o temor do
Senhor), diz o primeiro; “Accedite filii et inluminamini” (Entrai, filhos, e
sereis iluminados), diz o segundo.

Algumas imagens da igreja de São Pedro (30Giorni)
Depois de passar sob essas pequenas abóbadas baixas do
átrio interno, chega-se à grande nave de São Pedro, com mais de 20 metros de
comprimento. É então que, se nos voltarmos para trás, veremos na parede ao
fundo o grande afresco do Apocalipse. Num esplendor de cores que o clima seco
do monte Pedale preservou até nós, é contada a luta dos anjos, guiados por
Miguel, contra o imenso dragão que queria apossar-se do filho recém-nascido da
mulher “vestida de sol”, como se lê no capítulo 12 do Apocalipse. O cortejo de
anjos armados com lanças finas, com seu andar dançante e auréolas verdes,
vermelhas e azuis, acaba derrotando o dragão, “e não se encontrou mais um lugar
para ele no céu. Foi expulso” (Ap 12,8-9). É impossível não ficar atônito
diante da elegância e da perfeita harmonia dessa composição, que sintetiza o
complexo relato do Apocalipse numa única cena, conservando uma extraordinária
unidade de conjunto. Parece “pular” sem esforço os mil anos de história que nos
separam dela, para falar com uma linguagem visual ainda direta e fascinante.
A última jóia conservada pela igreja de São Pedro é a luminosa capela do
cibório, decorada com baixos-relevos semelhantes aos da basílica de Santo
Ambrósio, em Milão, mais conhecidos. No lado que fica de frente para a entrada,
destaca-se um Cristo crucificado. O Senhor tem um olhar cheio de ternura, como
se quisesse dizer que seus braços estão abertos para acolher os homens.
Embaixo, Maria e São João se voltam para ele, como se fossem impelidos por um
desejo ardente. “Mors superat mortem”, diz uma das escritas ao fundo dessa
cena. No lado direito da capela do cibório, na belíssima Ressurreição, vê-se o
anjo que se senta imponente sobre o sepulcro vazio, com as asas desdobradas,
quase num ímpeto de felicidade. O artista segue o que diz o Evangelho de Marcos
e descreve Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago, que vieram para ungir com
óleos o corpo do Senhor: esta última, surpreendida, deixa escapar das mãos o
vaso dos unguentos, que quica no vazio, destacado no fundo branco. Com as
escritas vistosas, que sublinham os nomes de todos os protagonistas, parece que
vemos uma história em quadrinhos da antiguidade. Nela, nada é banal: cada
quadro é para todos e está ao alcance de todos.
Fonte: https://www.30giorni.it/