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segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

A cerca de Chesterton, o princípio que te obriga a pensar duas vezes antes de mudar algo

A cerca de Chesterton (Getty Images)

7 janeiro 2024

Não destrua o que você não entende!

Isso é, em resumo, o que aconselha uma regra simples chamada Cerca de Chesterton, que sugere que você nunca deve destruir algo, mudar uma regra ou alterar uma tradição se não entender por que ela foi criada.

É, de certa forma, um apelo à humildade ao criticar e querer reformar desde políticas ou instituições, até costumes familiares, protocolos de trabalho ou linhas de código em programas de computador.

Essa teoria ressalta que, sem compreender totalmente o que está acontecendo, as consequências de uma ação precipitada podem acabar sendo muito piores do que aquilo que se pretende reparar.

Aquela coisa da cerca pode parecer estranha, mas é chamada assim pela forma como a ideia foi ilustrada por quem a tornou famosa: o escritor e filósofo inglês Gilbert Keith Chesterton (1874–1936).

Chesterton era um “gigante obeso”, como Jorge Luis Borges o descreveu no prólogo do conto O Olho de Apolo d o livro A Biblioteca de Babel.

O escritor argentino afirmou ser "um homem gentil e afável" que "poderia ter sido Kafka ou Poe, mas escolheu corajosamente a felicidade ou fingiu tê-la encontrado".

Ele descreveu os escritos críticos de Chesterton como encantadores e penetrantes e disse que seus primeiros romances combinavam "o místico com o fantástico".

Mas as obras que causaram maior impacto foram cerca de 50 contos sobre um detetive que era um padre aparentemente ingênuo, mas psicologicamente perspicaz, chamado Padre Brown.

"A literatura é uma das formas de felicidade; talvez nenhum escritor tenha me proporcionado tantas horas felizes quanto Chesterton", escreveu Borges.

Quando não estava escrevendo ou, mais tarde, dando entrevistas para a BBC, ele adorava debater, muitas vezes se envolvendo em disputas públicas amistosas ​​com intelectuais como George Bernard Shaw, H. G. Wells e Bertrand Russell.

Ou brincava com eles.

Certa vez, ele disse a Shaw: "Ao ver você, qualquer um pensaria que uma fome atingiu a Inglaterra", ao que Shaw respondeu: "Ao ver você, qualquer um pensaria que você causou a fome."

“O gigante obeso”, Chesterton tinha 1,93 metros de altura e pesava 130 quilos (Getty Images)

Mas algo que ele levava muito a sério era a religião.

"Da fé anglicana ele passou para a fé católica, que, segundo ele, se baseia no bom senso", disse Borges.

"Ele argumentou que a estranheza dessa fé se ajusta à estranheza do universo, assim como o formato estranho de uma chave se ajusta exatamente ao formato estranho da fechadura."

Precisamente e curiosamente isso foi extraído de um livro intitulado The Matter: Why I am Catholic (1929), em português, algo como "O assunto: por que sou católico", no qual ele falou sobre a cerca que leva seu nome.

Reformar sem deformar

Ele declarou que "em matéria de reformar as coisas, em vez de deformá-las, existe um princípio claro e simples".

Ele sugeriu imaginar "por uma questão de simplicidade, uma cerca ou portão erguido ao longo de um caminho".

"O tipo mais moderno de construtor chega alegremente e diz: 'Não vejo utilidade nisso; vamos derrubá-lo.'"

"Ao que o tipo mais inteligente de construtor faria bem em responder: 'Se você não vê utilidade nisso, certamente não vou deixar você eliminá-lo. Vá embora e pense. Então, quando você puder voltar e me dizer que você vê utilidade nisso, posso permitir que você faça isso."

A ideia é que somente quando você souber qual era o propósito de algo, você poderá decidir se ainda é necessário, se deve ser modificado ou simplesmente omitido.

Segundo Chesterton, esse princípio se baseia no senso comum mais básico.

"A cerca não cresceu ali. Não foi criada por sonâmbulos que a construíram durante o sono."

"Alguém tinha algum motivo para pensar que isso seria bom para alguém. E até sabermos qual foi o motivo, não podemos realmente julgar se foi razoável."

E alertou que, se não tivermos certeza, “é muito provável que percamos todo um aspecto da questão”.

A cerca, por exemplo, mesmo que fosse em mau estado e pequena, talvez separasse as vacas das ovelhas, imaginou o filósofo Jonny Thomson em Big Think.

As ovelhas, ao comerem, arrancam a grama quase pela raiz, enquanto as vacas precisam de grama alta para comer com suas línguas preênseis. Pouco depois de remover a cerca, as vacas estariam desnutridas e com fome.

Getty Images

De refrescos a pardais

Ora, embora Chesterton tenha defendido a análise de decisões que implicavam mudança desta forma porque tendia a ser conservador, o princípio continua ecoando em vários campos, do pessoal ao político.

Ao tentar mudar maus hábitos, por exemplo, muitas vezes deixamos de levar em conta que eles não aparecem do nada: geralmente evoluem para satisfazer uma necessidade não atendida.

Se esse aspecto não for levado em consideração, mesmo que um hábito seja eliminado, ele poderá ser substituído por outro mais prejudicial.

No nível empresarial, em um post considerado clássico, o empreendedor Steve Blank deu um exemplo que viu em startups quando elas crescem e contratam diretores financeiros.

Estes, na tentativa de reduzir custos – e se exibir – muitas vezes decidem acabar com detalhes da empresa para os funcionários, como refrigerantes e salgadinhos gratuitos, por considerá-los um gasto inútil.

Na experiência de Blank, o resultado é sempre o mesmo: para os funcionários que ajudaram a empresa a crescer, mesmo que tenham condições de pagar pelos refrigerantes, parece um sinal de mudança na cultura da empresa.

E isso pode levar as pessoas mais talentosas a abandonarem porque, de repente, tudo parece muito corporativo, não é mais como antes.

Como estes, muitos exemplos, incluindo um tremendamente trágico: o extermínio de pardais na China, parte da Campanha das Quatro Pragas do projeto Grande Salto Adiante de Mao Zedong (1958 a 1962).

Os pardais eram suspeitos de roubar grãos dos campos, por isso milhões de chineses fizeram tudo o que podiam para eliminá-los, com sucesso: a população de pardais foi levada à beira da extinção.

O surto de gafanhotos, por outro lado, sem pardais para controlá-los, disparou e se tornou um dos gatilhos da Grande Fome Chinesa, um dos maiores desastres provocados pelo homem na história.

Chesterton com seu traje habitual de chapéu de abas largas, capa e pincenê. Arte foi feita por Joseph Simpson (Getty Images)

Vista dessa forma, a cerca de Chesterton parece um mecanismo para evitar a lei das consequências não intencionais.

O princípio invoca o entusiasmo excessivo dos reformadores e procura contê-lo.

Mas pode ser usado para o oposto.

As reformas, grandes e pequenas, tendem sempre a ter uma força que trabalha contra elas: a resistência à mudança.

Uma organização, por exemplo, pode facilmente se tornar algo desnecessariamente complexo que já não se adequa à sua finalidade. Mas quanto mais tempo sobreviver, menor será a probabilidade de ser reformada ou abolida.

Nestes casos, é aconselhável se comportar como aquele “construtor inteligente”, e assim ter argumentos sólidos para demonstrar exatamente porque se tornou inútil.

Mas às vezes, não importa o quanto você queira, você não pode se dar ao luxo de examinar todas as decisões. Portanto, talvez valha mais a pena invocar Alexandre, o Grande, do que Chesterton.

Segundo a lenda, quando Alexandre conquistou a Frígia foi desafiado a desatar o nó górdio, tão complicado que um oráculo declarou que quem conseguisse desfazê-lo estava destinado a governar toda a Ásia.

Alexandre tentou por um tempo até cansar. Ele declarou que não importava como conseguiria isso, então ele desembainhou a espada e cortou de uma só vez.

O importante é saber se você está olhando para uma cerca ou para um nó.

Às vezes sim, às vezes não

Existem certas estratégias que podem ser usadas como guias nesses casos.

Aqueles que trabalham com computação, como na estratégia de Alexandre, o Grande, às vezes usam o que chamam de Teste do Grito, que aplicam a produtos, serviços ou capacidades que estão ativos, mas ninguém usa.

É simples: retire e espere para ver se alguém grita. Se isso acontecer, reinstale.

É um caso que poderia se enquadrar nas decisões do tipo 2 descritas pelo fundador da Amazon, Jeff Bezos, em uma carta aos acionistas que muitos usam como referência para discernir entre as opções de fechamento ou de nó.

Só que ele falou sobre portas.

Só existe um caminho: depois de atravessá-la, ela fecha nas suas costas e não é aberta novamente.

Outra é de mão dupla: você pode entrar e sair por ela.

Alexandre, o Grande, cortando o nó górdio (autor desconhecido) - Getty Images.

"Algumas decisões têm consequências e são irreversíveis ou quase irreversíveis (portas de sentido único) e essas decisões devem ser tomadas de forma metódica, cuidadosa e lenta, com grande deliberação e consulta."

“Se você passar e não gostar do que vê do outro lado, não conseguirá voltar para onde estava antes. Podemos chamar essas decisões de Tipo 1."

"Mas com a maioria das decisões não é assim: são mutáveis, reversíveis, são portas de mão dupla."

"Se você tomou uma decisão abaixo do ideal, não precisa conviver com as consequências por tanto tempo. Você pode abrir a porta novamente e voltar."

"As decisões do tipo 2 podem e devem ser tomadas rapidamente por indivíduos ou pequenos grupos com bom senso."

Você vai fazer a reforma ou buscar solucionar um problema facilmente reversível?

Então você poderia fazer alterações rapidamente com informações imperfeitas e ver o que acontece.

Se for irreversível, é aconselhável recolher informação, mesmo que o processo seja lento e implique custos.

Chesterton teria concordado com esse tipo de cuidado antes da decisão.

Fonte: https://www.bbc.com/

Festa do Batismo do Senhor

Batismo de Jesus (Vatican Media)

Ao sair da água, Jesus foi o único a reconhecer a voz do céu: “Tu és meu Filho muito amado”. Estas palavras são dirigidas, hoje, a nós: “Tu és meu Filho muito amado”, ou seja, “Em ti, sou feliz”!

Vatican News

A Igreja do Oriente já celebrava a Epifania e o Batismo de Jesus, no ano 300, em 6 de janeiro, enquanto a Igreja do Ocidente comemorava esta festa apenas na Liturgia das Horas. Em 1969, com a Reforma litúrgica, esta festa foi marcada no Domingo após a Epifania. Onde a Solenidade da Epifania não puder ser celebrada no dia 6 de janeiro, pode ser no domingo entre 2 e 8 de janeiro e a Festa do Batismo, na segunda-feira após a Epifania. Com esta festa, termina o ciclo de Natal, embora permaneça a possibilidade de celebrar, em 2 de fevereiro, a Apresentação do Senhor ao Templo, "Luz dos povos" (também conhecida como festa das "Candeias").

Texto: (Mc 1,7-11)

"Naquele tempo, João pôs-se a proclamar: “Depois de mim vem outro mais poderoso do que eu, do qual não sou digno de me prostrar para desatar a correia das suas sandálias. Eu vos batizei com água; ele, porém, vos batizará no Espírito Santo”. Ora, naqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi batizado por João, no rio Jordão. Enquanto Jesus saía da água, João viu os céus se abrirem e descer o Espírito sobre Ele, em forma de pomba. E ouviu-se uma voz dos céus: “Tu és meu Filho muito amado; em ti ponho toda a minha complacência” (Mc 1,7-11).

Síntese de um caminho

Durante o tempo de Natal, adoramos o Menino de Belém deitado em uma manjedoura (Natal); contemplamos a Sagrada Família de Nazaré (I Domingo depois do Natal); veneramos Maria, Mãe de Deus (1° de janeiro); meditamos sobre a manifestação de Jesus aos Magos, ou seja, a todos os povos (6 de janeiro).

Início da vida pública de Jesus

“Nazaré” era uma cidadezinha, sem tradições e vista de forma pejorativa: “Pode, porventura, vir algo de bom de Nazaré?” Perguntou Natanael (Jo 1,46). No entanto, ali Jesus viveu 30 anos: anos de silêncio, crescimento, tomada de consciência, trabalho, família, vida normal... "Galileia" era uma região de pouca importância, do ponto de vista religioso, por ser considerada contaminada pelos pagãos. Esses detalhes, utilizados pelo evangelista, são essenciais para nos ajudar a entender que Jesus começou sua vida "pública", não como um "privilegiado", mas, por assim dizer, pela "porta dos fundos": em seus 30 anos de vida, dizem os Evangelhos, Jesus cresceu em “estatura, sabedoria e graça” (Lc 2,52). Graças à sua maturidade Jesus tona-se “solidário” com os últimos e pecadores. De fato, São Paulo escreve: “Aquele que não conheceu o pecado, Deus o fez para pecado e maldição" (cf. 2Cor 5,21; Gl 3,13).

A voz

Ao sair da água, Jesus foi o único a reconhecer a voz do céu: “Tu és meu Filho muito amado”. Estas palavras são dirigidas, hoje, a nós: “Tu és meu Filho muito amado”, ou seja, “Em ti, sou feliz”! Em cada um nós, há uma felicidade de Deus, porque, de qualquer forma, cada um de nós foi feito “à sua imagem e semelhança” (Gn 1,26) e ninguém poderá cancelar a sua satisfação pelo que fez: "E viu que era uma coisa muito boa/linda!" (Gn 1,31). A sua vinda é a confirmação de que interessamos a Ele e diz a cada um de nós: "Você me interessa, por isso cuido de você, me preocupo com a sua existência. Quero, com você, dar início a uma nova história de salvação, um novo início”.

Agora, mas não ainda

O nascimento de Jesus continha todos os “sinais” da sua paixão e morte, como muitos iconógrafos afirmam ao “descrever” os ícones da natividade: Jesus deitado, não tanto em uma manjedoura, mas em um "sarcófago de pedra" e revestido, não com faixas de um recém-nascido, mas de um defunto. Este aspecto une nascimento e morte, Natal e Páscoa; sem contar que um dos três presentes dos Magos, a mirra, era uma substância usada para purificar o corpo de um falecido.

Batismo de Jesus, nosso batismo

Jesus tornou-se solidário com os homens e, embora não tivesse pecado, se pôs em fila entre os pecadores, ao lado deles, pois Ele é “Deus conosco”, o Emanuel; Ele arca com o destino de cada um. Assim, também nós somos chamados - por sermos batizados e imersos no seu amor – a cuidar de quem compartilha a experiência de vida, começando pelos últimos (pecadores), os excluídos (Nazaré), os etiquetados (Galileia). Todo julgamento ou preconceito deve ser dissipado na verdade, porque cada um de nós é o "muito amado do Senhor"; em nós Deus colocou "toda a sua complacência”, a sua alegria. Isso vale para mim, mas também por todos os irmãos e irmãs, para “Todos os irmãos”, independentemente da nossa condição de pecadores. No batismo renova-se o Acontecimento do Natal: Deus desce, entra em mim para que eu possa renascer nele, tornar-me uma nova criatura. No entanto, esta “vida nova” (cf. Is 43,19) requer testemunho, como Jesus disse de si mesmo: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9); assim, todos os que nos encontrarem também possam dizer "vejo Jesus em você". Claro, isso é humanamente impossível, mas "para Deus nada é impossível" (Lc 1,37).

Do Batismo à Vida

O Batismo de Jesus encerra, portanto, o tempo forte de Natal e dá início ao Tempo Comum, o tempo da vida. O Batismo inaugurou a missão pública de Jesus, mas, para nós, é a inauguração do nosso compromisso de sair da "gruta de Belém", onde O adoramos, e começar a nossa missão de dar testemunho dele, todos os dias, enriquecidos pela alegria de ser Comunidade/Povo de Deus: uma Comunidade que se reúne, todos os domingos, para se deixar guiar pela "estrela" da Palavra de Deus, se alimentar da Eucaristia, Pão do Caminho, vivendo dela e na caridade, rumo aos céus abertos, onde o Pai nos aguarda para viver eternamente com Ele.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

'Sine sole sileo': cansaço e descanso (1)

'Sine sole sileo': cansaço e descanso (Opus Dei)

'Sine sole sileo': cansaço e descanso (1)

Neste editorial, em duas seções, abordaremos as questões relacionadas à fadiga e ao descanso, que formam parte de nossa vida de filhos de Deus.

03/01/2024

Uma das inscrições clássicas que decoram os relógios de sol lembra-nos, com uma simplicidade que desarma, algo que parece óbvio: “Sine sole sileo – sem o sol me calo”[1]. Costumamos não dar atenção às evidências, e, no entanto, muitas vezes nelas estão escondidos princípios fundamentais para a vida: da mesma forma que um relógio de sol se converte, sem a luz do dia, em uma simples peça de decoração, ou uma planta pode chegar a murchar por falta de iluminação, também os ideais que Deus colocou em nosso coração parecem definhar e inclusive desvanecer se não tivermos a luz do descanso.

São Josemaria costumava dizer que, para as pessoas do Opus Dei, o trabalho “é uma doença crônica, contagiosa, incurável e progressiva”[2]. Deus conta com a tarefa constante e esforçada dos cristãos para levar o mundo até Ele, junto a tantas pessoas honradas. Mas necessita que, como parte dessa tarefa, cuidemos a nós mesmos, porque o esforço do dia a dia nos desgasta e necessitamos nos refazer. “O teu corpo é como um burrico – um burrico foi o trono de Deus em Jerusalém – que te leva ao lombo pelas veredas divinas da terra: é preciso dominá-lo para que não se afaste das sendas de Deus, e animá-lo para que o seu trote seja tão alegre e brioso quanto é possível esperar de um jumento”[3].

QUEM ESTÁ FISICAMENTE ESGOTADO PERCEBE QUE A CABEÇA E O CORAÇÃO NÃO LHE RESPONDEM, FICAM EMBOTADOS. E QUEM PADECE CANSAÇO PSICOLÓGICO, FACILMENTE SOMATIZA ESSA FADIGA

Existem, a traços largos, dois tipos de cansaço: o físico e o psicológico[4]. Estão entrelaçados porque a pessoa humana é uma unidade de corpo, mente e espírito. Por isso, um tipo de cansaço costuma influir no outro, e piorá-lo, gerando pequenas – ou nem tão pequenas – espirais de fadiga: quem está fisicamente esgotado percebe que a cabeça e o coração não respondem, ficam embotados. E quem padece cansaço psicológico, facilmente somatiza essa fadiga: sofre-a em forma de doenças ou desgaste corporal que acentuam seu cansaço interior. Essa segunda espiral é especialmente sutil e devemos prestar atenção a ela, porque pode passar despercebida para quem a padece e para aqueles que o rodeiam. Sem apreensões, é necessário vê-la se aproximar porque a melhor cura é a prevenção, e existem dificuldades na vida que não são motivadas pela falta de entrega ou de interesse, mas, fundamentalmente, pelo cansaço.

Neste editorial, em duas partes, abordaremos as questões relacionadas à fadiga e ao descanso, que formam parte da nossa vida de filhos de Deus: “Ele, perfectus Deus, perfectus Homo – perfeito Deus e perfeito Homem –, que tinha toda a felicidade do Céu, quis experimentar a fadiga e o cansaço, o pranto e a dor..., para que entendêssemos que ser sobrenatural pressupõe ser muito humano”[5].

Aprender a não se esgotar

Há circunstâncias da vida que podem ser especialmente desgastantes para uma pessoa, principalmente porque habitualmente devem ser compatíveis com o curso normal das outras coisas. A doença de uma pessoa da família, o nascimento de um novo filho, um período especialmente exigente no estudo ou no trabalho, um acúmulo de problemas variados... Essas situações, principalmente se duram mais do que o previsto, requerem defender tempos ou modos de descansar, ainda que sejam pequenos, para evitar que o desgaste deixe um rastro duradouro ou se converta em cansaço crônico. Nessa situação, ter o apoio daqueles que nos rodeiam é tão decisivo quanto ter a prontidão para pedir ajuda, porque, às vezes, os outros podem não ser conscientes do grau de esgotamento que nos afeta.

A PRIMEIRA E MELHOR MANEIRA DE DESCANSAR, É APRENDER A NÃO SE CANSAR EXCESSIVAMENTE, A NÃO SE ESGOTAR.

Quando descobrimos algo descosturado em nossa roupa, muitas vezes, é crucial trocá-la logo e esperar consertá-la antes de usar outra vez, para que o descosturado não se faça maior ou o tecido se rasgue. Pois, a primeira e melhor maneira de descansar, é aprender a não se cansar excessivamente, a não se esgotar. E, para isso, é necessário deixar momentaneamente nas mãos de outras pessoas a primeira linha de frente, ainda que possa ser difícil para nós. Isso não significa economizarmos esforços ou tornar-nos rígidos: significa simplesmente reconhecer os próprios limites, e também, às vezes, desprender-se um pouco dos resultados do nosso trabalho. Deus quer que nos gastemos por amor e não que nos desgastemos de modo que o amor se extinga porque o edifício foi derrubado como acontece com a casa construída sobre a areia (cfr.Mt7,24-27). “Abatimento físico. Estás... arrasado. – Descansa. Pára com essa atividade exterior. – Consulta o médico. Obedece e despreocupa-te. Em breve regressarás à tua vida e melhorarás, se fores fiel, os teus trabalhos de apostolado”[6].

A sabedoria popular aconselha a não deixar para amanhã o que se pode fazer hoje, porque é fato que às vezes atrasamos decisões, esforços, iniciativas pela simples preguiça de empreendê-las. No entanto, tão importante é ler esta frase do lado direito como do avesso: junto à diligência para fazer as coisas, é bom se dizer também: “deixe para amanhã o que você não possa fazer hoje”; não carregue o hoje com mais do que você pode fazer, e não deixe para amanhã o descanso que você necessita hoje. O livro da Sabedoria expressa isso de maneira decisiva: “Meu filho, não empreendas coisas em demasia, porque, se adquirires riquezas, não ficarás isento de culpa; se empreenderes muitos negócios, não poderás abrangê-los; se te antecipares, não te sairás bem deles” (Si11,10).

“Para mim, escrevia São Josemaria, sempre ficam coisas para o dia seguinte. Temos de chegar à noite, depois de um dia cheio de trabalho, com tarefas de sobra para o dia seguinte. Temos de chegar à noite carregados, como burrinhos de Deus”[7].

Por isso, na hora de assumir tarefas, é importante distinguir a disponibilidade – atitude de serviço, de abertura ao que nos possam pedir – de uma responsabilidade excessiva, pela qual tentamos responder a mais do que realmente podemos abarcar. Nisto, como em tudo, convém equilibrar as coisas: não se trata de fazer-nos impermeáveis aos imprevistos, frequentes na vida de todos os dias, mas também não deixaremos – na medida em que possamos evitá-lo – que a vida inteira seja um grande imprevisto.

Medir as próprias forças

Existem pessoas muito atentas e capazes, a quem custa muito dizer “não” a determinados pedidos: às vezes, preferem ocupar-se de uma tarefa, mesmo que vejam que não têm tempo ou energias para acometê-la a dar um desgosto ou ficar mal com uma negativa.

Outras vezes, assumem a tarefa porque sabem, não por presunção, mas porque lhes consta, que podem resolver o assunto melhor do que outras pessoas. Também há aquele que, por ser sensível aos problemas dos outros, tende a carregar muitos deles. Ou que, porque tem um olhar atento e profundo para os detalhes, não consegue concluir as tarefas, que se amontoam, formando uma montanha que o oprime. Talvez uns e outros meçam mal as suas forças, e aconteça com eles como com uma carroça sobrecarregada: de pouco serve a força dos cavalos se os eixos da carroça se deformam pelo peso. Pode ser até que, em um primeiro momento, consigam rodar, mas terminarão por se deformar ou se arrebentar.

NO TRABALHO É NECESSÁRIO DISTINGUIR A GENEROSIDADE DA PRODIGALIDADE. POR CAUSA DESSA ÚLTIMA, DAMOS MAIS DO QUE DEVEMOS E NOS INCAPACITAMOS PARA CONTINUAR DANDO.

Em maior ou menor medida, alguns destes traços costumam aparecer para quem leva o seu trabalho a sério. Pode produzir-se, às vezes, um efeito perverso que acentua o cansaço: as outras pessoas tendem a pedir mais favores a quem raramente dá uma negativa e procura trabalhar bem ou porque se aproveitam de sua boa-fé ou porque não são conscientes – às vezes não podem sê-lo – da carga que arrasta. Quando o cansaço começa a se fazer notar, aquela pessoa que nunca dizia não talvez estoure ou responda com maus modos, irritada com o mundo, para o assombro dos outros: como cada um sabia unicamente do favor que lhe tinha pedido, e somente ela levava o peso do conjunto, sua reação lhes parece incompreensível. E assim, uma pessoa com uma disposição sincera de ajudar pode se tornar um pouco amarga e solitária. Também aqui reza a sabedoria da Bíblia: “Há pessoas que trabalham, se afadigam e se atropelam e, apesar de tudo, estão sempre atrasadas”. (Si 11,11).

No trabalho é necessário distinguir a generosidade da prodigalidade. Por causa dessa última, damos mais do que devemos e nos incapacitamos para continuar dando: o presente não tem que fazer-nos perder de vista o futuro, até aquele futuro mais próximo.

Ler os sinais do cansaço

É necessário aprendermos a ler os sinais de cansaço, em nós e nas outras pessoas. Nem todo mundo se cansa pelos mesmos motivos, nem com os mesmos prazos. Mas os sintomas se assemelham: as defesas da personalidade diminuem, e as limitações do caráter são mais salientes.

Uma pessoa cansada tende a ver as coisas com mais pessimismo do que o normal: quem habitualmente é otimista, por exemplo, reagirá com uma apatia que lhe é estranha. Quem tem uma tendência a se preocupar, verá multiplicados os motivos de inquietação, paralisando-se. Essa pessoa deverá ser alertada sobre como, neste momento, não está vendo as coisas com objetividade. Quem talvez é normalmente manso reagirá com uma brusquidão que, talvez em outra pessoa, seria simplesmente um traço habitual de seu caráter.

Se, nesses momentos de cansaço, nos que a vista se obscurece um pouco, há uma mão amiga que aconselha com atenção, sem paternalismo, procurando ajudar a pessoa a conhecer-se, ela mesma irá aprendendo a ler os sinais de seu cansaço e a descansar ou a pedir uma mudança de ritmo antes de esgotar-se. “Dizes que para ti tudo é indiferente? – Não queiras iludir-te. Agora mesmo, se eu te perguntasse por pessoas e por atividades em que por Deus empenhaste a tua alma, sei que me responderias – briosamente! –, com o interesse de quem fala de coisa própria. Não, para ti não é tudo indiferente. É que não és incansável..., e necessitas de mais tempo para ti; tempo que será também para as tuas obras, porque, no fim das contas, tu és o instrumento”[8]

Uma amostra de amizade fina é ajudar os outros, ensinando-os com simpatia – sem condescendência, mas colocando-se a seu lado –, a dizer não a certas petições, sem, por isso, carregar-se com remorsos. É ajudar a descartar qualquer projeto que não seja objetivo realizar, a aplicar a proporcionalidade e deixar talvez algumas coisas menos acabadas do que queriam. É ajudar a ver que, acima de tudo o que têm entre mãos nesse momento, acima das novas frentes de ação que lhes passam pela cabeça, está o seu dever de descansar.

Nas últimas décadas vem sendo frequentes os casos de burnout (estar queimado) ou estresse profissional, que costumam afetar profissionais das áreas de serviço: médicos, enfermeiras, professores, sacerdotes... Trata-se de pessoas que vivem sua profissão com paixão – porque não existe nada tão apaixonante como dedicar-se a servir a outras pessoas – mas que se veem esmagadas pelas constantes demandas que recebem de fora e de dentro: é como se fosse um cabo elétrico que recebe tantos sinais de suas múltiplas conexões que acaba se queimando(burnout).

NÃO SOMENTE O EXCESSO DE TRABALHO PODE PROVOCAR UM BURNOUT: TAMBÉM A SUA ESCASSEZ, OU O FATO DE QUE NÃO SE ENCONTRE UM SENTIDO PARA O TRABALHO, PORQUE SE SENTE INÚTIL OU PERCEBE QUE SEU TRABALHO NÃO É VALORIZADO.

Os três sinais de burnout são o sentimento de vazio, o esgotamento e a sobrecarga. Para prevenir estas situações, e ajudar a tempo, convém prestar atenção às características das pessoas: é candidato ao burnout quem tem traços de hiper-responsabilidade, perfeccionismo, insegurança, auto exigência, quem tem expectativas irreais.

O ambiente de trabalho

É conveniente também prestar atenção ao ambiente laboral ou à instituição: como se distribuem as tarefas, como se descansa, quais são os incentivos ou recompensas, como é a formação permanente do pessoal. O descuido nestes aspectos ambientais, ou a tendência a dar excessivas responsabilidades a pessoas jovens, sem dedicar tempo à formação adequada, ou sem fazê-los notar o que fazem de forma positiva, é um fator de risco.

Não somente o excesso de trabalho pode provocar um burnout: também a sua escassez, ou o fato de não encontrar um sentido para o trabalho, porque se sente inútil ou percebe que o seu trabalho não é valorizado. O sentido, além disso, é algo que deve crescer dentro de cada pessoa: não basta só lembrá-lo externamente, da mesma forma que não basta, na maioria das vezes, uma batidinha nas costas para dar ânimo.

Ainda que pareça óbvio dizer que as pessoas são muito diferentes, a velocidade da vida pode fazer que, às vezes, se dedique pouco tempo ou energias a avaliar o que podemos esperar delas. Há, por exemplo, pessoas muito capazes de resolver questões imprevistas, às vezes frequentes nas organizações. Inclusive podemos dizer que se divertem. São como os atletas que gostam do risco: o imprevisto faz com que saiam da rotina, descansa-os. Por outro lado, há outras pessoas que necessitam mais estabilidade, porque não se movem tão comodamente a curto prazo: o que a outros descansa, a eles esgota.

Nesse sentido, é importante que quem ocupe cargos de responsabilidade nas organizações, procure evitar que uma pessoa, por um lado muito capaz, tenha um tipo de tarefa que lhe produza um desgaste excessivo. A maioria das pessoas tem uma certa flexibilidade e, às vezes, as limitações poderão ser mitigadas com a experiência e com alguns conselhos. Outras vezes, porém, será preferível procurar uma outra pessoa para essa tarefa. Todos os trabalhos têm seus dissabores, e, às vezes, não há outra possibilidade que a de adaptar-se, mas quando uma pessoa está no seu lugar, rende mais, e descansa mais.

Às vezes, a situação de sobrecarga não se deve ao cansaço autoinduzido por assumir muitas tarefas ou administrá-las mal, mas a algumas deficiências da organização que fazem com que uma pessoa tenha que carregar com mais trabalho do que é razoável, talvez porque sejam muitas as pessoas que podem requisitar-lhe trabalhos. Ainda que seja importante que ela mesma fale com seus superiores para ajustar as cargas, uma parte importante da responsabilidade de direção consiste em também em perceber essas situações: é necessário cuidar das pessoas, para que não se quebrem. Não somente pensando na eficácia da organização, mas também na felicidade de cada um e de suas famílias. Outras vezes, a situação não tem conserto fácil porque a pessoa e a empresa são uma mesma coisa, ou porque pesa sobre a pessoa a liderança de um projeto que tem sua própria lógica, às vezes um pouco tirânica, e que dificulta repor forças.

Um cansaço feliz

Em algumas ocasiões, o cansaço pode ter sua origem na frustração de quem não aceitou que nem sempre nossas expectativas sobre as coisas e a pessoas se cumprem. “O problema não está sempre no excesso de atividades, mas, sobretudo, nas atividades mal vividas, sem as motivações adequadas, sem uma espiritualidade que impregne a ação e a torne desejável. Daí que as obrigações cansem mais do que é razoável, e às vezes façam adoecer. Não se trata duma fadiga feliz, mas tensa, gravosa, desagradável e, em definitivo, não assumida”[9].

Há quem se desgasta “por sustentar projetos irrealizáveis e não viver de bom grado o que poderia razoavelmente fazer; outros, por não aceitarem a custosa evolução dos processos e querem que tudo caia do Céu; outros, por se apegarem a alguns projetos ou a sonhos de sucesso cultivados pela sua vaidade”[10].

O choque de nossas pequenas esperanças com a realidade pode ser sinal e oportunidade para procurar uma vez mais nosso descanso em uma esperança maior [11]. “O Crux, ave spes única! Ó Cruz, salve, única esperança!”, reza o hino Vexilla Regis[12]. O verdadeiro descanso reside no abandono em Deus, em abraçar as palavras de Jesus ao Pai: “nas tuas mãos entrego o meu espírito”. (Lc 23,46). Esse abandono, que “é desejar as coisas boas, colocar os meios para consegui-las e depois, se não saem, colocar-se nas mãos de Deus dizendo: continuarei trabalhando para que saiam”[13].

Mas “e se a Cruz fosse o tédio, a tristeza? – Eu te digo, Senhor, que, Contigo, estaria alegremente triste”[14]. Inclusive quando nos fatiguemos porque não soubemos descansar a tempo, ou por causa da nossa limitação, trata-se de redescobrir e saborear o fundo de felicidade que prometem essas palavras do Senhor para os cansados, que hoje são uns e amanhã outros... – porque quem não se cansa, às vezes, no caminho da vida? – : “Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei. Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve”. (Mt 11,28-30)

Wenceslao Vial – Carlos Ayxelà

Tradução: Mônica Diez


[1] São Josemaria quis que esta inscrição fosse gravada em um relógio de sol do jardim de Villa dele Rose, uma casa de retiros em Castelgandolfo, Roma.

[2] São Josemaria, Carta 15-X-1948, n. 14 (citado em A. Vázquez de Prada, El Fundador del Opus Dei, III, Rialp, Madrid 2003, 429, nota 118).

[3] São Josemaria, Amigos de Deus, 137.

[4] Cfr. F. Sarráis, Aprendiendo a Vivir: el Descanso, Pamplona, Eunsa, 2011.

[5] São Josemaria, Forja, 290.

[6] São Josemaria, Caminho, 706.

[7] São Josemaria, Carta 15-X-1948, 10, tradução livre.

[8] São Josemaria, Caminho, 723.

[9] Francisco, Evangelii Gaudium (24-XI-2013), 82.

[10] Ibidem.

[11] Cfr. Bento XVI, Enc. Spe Salvi (30-XI-2007), 30-31.

[12] Este hino é rezado na Liturgia das Horas, a partir da semana da Paixão e durante a Semana Santa.

[13] São Josemaria, Notas de uma Reunião Familiar, 15-IV-1974, tradução livre.

[14] Forja, 252

Fonte: https://opusdei.org/pt-br

Como vemos os nossos filhos? Reflexões para a Festa da Sagrada Família

A Sagrada Família (Presbíteros)

Como vemos os nossos filhos? Reflexões para a Festa da Sagrada Família

Percebe-se atualmente uma crise educativa cada vez mais intensa. De modo geral, constata-se que o nível médio de educação diminui drasticamente e que o processo formativo dos jovens enfrenta grandes dificuldades. As crianças e os adolescentes aprendem cada vez menos; a autoridade dos professores tende a desaparecer e os jovens, em meio a uma aparente energia, sentem-se sós e desorientados. E isso numa época de incrível desenvolvimento da Pedagogia. Nunca houve tantas pessoas que estudam essa ciência e nunca tivemos tantas teorias pedagógicas como agora. No Brasil a crise educativa é cada vez mais preocupante, embora tenha eminentes pedagogos. Um recente estudo comparou a educação em 40 países e mostrou que o Brasil (6ª Economia do mundo) ficou em 39º lugar na educação, atrás de países como Singapura (5º), Romênia (32º), Turquia (34º) e Argentina (35º)[1]. Certamente uma das causas da atual crise educativa no Brasil não é a falta de recursos, mas algo mais profundo: não sabemos mais como ver e tratar os nossos filhos.

Até a metade do século passado, tínhamos uma ideia bem clara sobre o que eram os nossos filhos: acima de tudo, eram considerados um dom de Deus, um presente que nos tinha sido dado para ser tratado com atenção, carinho e muita responsabilidade. Os filhos eram visto como um dom divino e a paternidade era considerada uma participação especial no poder criador de Deus. De modo que os filhos eram tratados com respeito e a vida era acolhida com alegria e generosidade.

Isso se deve ao fato de que nosso modo de viver até então era marcado pelos ensinamentos da cultura judaico-cristã. Seguia-se o exemplo de figuras como a de Ana (Cfr. 1 Sam. 1), uma mulher estéril que todos os anos ia a um Templo de Israel prestar culto a Deus, e que, certa vez teve a ousadia de pedir-lhe um filho. Depois que Deus escutara suas ferventes orações, ela retornou ao Templo para agradecer o dom recebido e para consagrar a vida daquele novo ser a Deus. Ana era plenamente consciente de que a vida humana procede e retorna a Deus, para quem nada é impossível.

A partir da “revolução” de 1968 uma nova cultura surgiu, na qual a visão bíblica foi abandonada. S. Freud, na sua época, sonhava o dia em que fosse separada a geração dos filhos da estrutura familiar, algo que a partir de 68 vem se tornando frequente. Desde então, procura-se incutir nos jovens a idéia de que os filhos são um obstáculo, algo que tolhe a liberdade, a autonomia e que impede a realização pessoal. Os filhos passam a ser considerados como uma ameaça e a gravidez como uma espécie de doença, que deve ser evitada a todo custo. E às pessoas que não são tão jovens, transmite-se a ideia de que os filhos são um “direito”. Desse modo, os filhos passam a ser considerados ou como uma “ameaça” ou como um “direito”, não mais como um dom. Daí surgem problemas sérios. Na Inglaterra, por exemplo, esse ano um dos pedidos mais feitos ao “Papai Noel” pelas crianças foi um pai; outro pedido comum foi, simplesmente, ter um irmão. O risco atual é que os adultos passem a considerar os próprios filhos como uma espécie de “mercadoria”, um sonho de consumo, que deve ser realizado num momento perfeitamente determinado. Os filhos são cada vez mais frutos de cálculos e não tanto do amor. E isso deixa feridas graves nas crianças.

Deixar de considerar os filhos como um dom divino e tê-los simplesmente como o resultado de uma técnica é um passo importante para a desconfiguração das famílias e para arruinar a educação. De fato, ocorre com frequência que os pais, paradoxalmente, procuram “superproteger” os filhos, buscando livrá-los de qualquer perigo e, ao mesmo tempo, não querem encontrar o tempo para dedicar-se à difícil tarefa educativa dos mesmos. As crianças são enviadas cada vez mais cedo às escolas e os professores devem se empenhar em transmitir valores que as crianças deveriam ter recebido em casa.

E há ainda outro grave perigo: os adultos procuram ter filhos mais para serem aprovados por eles, do que para transmitir um amor total, gratuito e comprometido. Sejamos sinceros: muitas vezes, em nossas famílias ocorre algo perverso: os pais se comportam como crianças, lamentando-se da infância que tiveram, e os filhos se sentem obrigados a comportarem-se como adultos[2]. Com essa mudança de papéis ninguém assume o a própria responsabilidade familiar, e isso se reflete no rendimento dos jovens nas nossas escolas e Universidades.

Nesse ponto, podemos talvez voltar nosso olhar ao livro que formou a civilização ocidental. O Evangelho conta-nos somente uma cena da adolescência de Jesus e do seu “processo educativo”. Quando ele tinha 12 anos, foi levado ao templo por Maria e José para participar na festa da Páscoa (Cfr. Lc 2). O jovem judeu quando cumpria essa idade iniciava a ser considerado adulto na fé. Quando aquela família deve retornar a casa, Maria e José se distraem e Jesus, como verdadeiro adulto, permanece no templo discutindo com os doutores da Lei. Quando ele é reencontrado, Maria o repreende, mesmo sabendo que quem estava diante dela não só era um “adulto” na fé, mas o mesmo Filho de Deus: “Meu filho, que nos fizeste? Teu pai e eu te procurávamos cheios de aflição”. E Jesus, depois de manifestar a plena consciência da sua identidade divina (“não sabíeis que devo ocupar-me das coisas do meu Pai?”), volta à casa com Maria e José e “era-lhes submisso em tudo”. Que impressionante! Maria e José não fugiram de sua responsabilidade educativa em relação àquele adolescente que sabiam ser o Filho de Deus; e Jesus, sendo verdadeiro Deus, volta à casa com sua família, obedecendo-lhes em tudo até os 30 anos. Vemos assim que na família de Nazaré ninguém fugia da própria responsabilidade, uma vez que eram unidos por um verdadeiro amor, o qual se demonstra na autoridade, na humildade e no serviço e não no autoritarismo ou na indiferença.

Parece, portanto, que para se recuperar o sentido da verdadeira educação, para se enfrentar à grave crise educativa atual, devemos ajudar as famílias a considerarem a vida como um dom de Deus, a tratarem os seus filhos com verdadeira diligência, não delegando toda a responsabilidade educativa a outras pessoas ou instituições. A tarefa é árdua, mas pode ser realizada, especialmente à luz da fé que por séculos iluminou a nossa sociedade. Devemos voltar a seguir ao modelo da Sagrada Família mais do que aos parâmetros contraditórios de uma “revolução” que só trouxe ao mundo a exaltação do egoísmo, da irresponsabilidade e o consequente aumento do sofrimento dos mais débeis.

Pe. Anderson Alves, diocese de Petrópolis – Brasil.

Doutorando em Filosofia na Pontifícia Università della Santa Croce, em Roma.

Escrito em 30/12/2012, festa da Sagrada Família.


[1] Notícia no seguinte link: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2012/11/ranking-de-qualidade-da-educacao-coloca-brasil-em-penultimo-lugar.html

[2] Sobre isso cfr.: G. Cucci, La scomparsa degli adulti, «La Civiltà Cattolica», II 220-232, caderno 3885 (5 de maio de 2012).

Fonte: https://presbiteros.org.br/

Por que Jesus foi batizado?

O Batismo de Jesus (Cléofas)

Por que Jesus foi batizado?

 POR PROF. FELIPE AQUINO

Pelo Batismo, sacramento, somos assimilados a Jesus, e na pia batismal participamos de sua Morte e a sua Ressurreição para uma vida nova.

Renascer da água e do Espírito para tornar-nos, no Filho, filho bem-amado do Pai e “viver em uma vida nova” (Rm 6,4). Assim, a pia batismal é o túmulo do nosso “homem velho” e o berço do nosso “homem novo”. Por isso, todos os dias, eu beijo e venero aquela pia onde eu fui batizado na Catedral de Lorena; e ali renovo, todos os dias, as Promessas do meu Batismo. E no meu escritório, o único Diploma que tenho na parede é a minha Certidão de Batismo, datada de 8 de outubro de 1949; será o bilhete para o meu ingresso no céu.

Mas Jesus não tinha o pecado original; então, por que foi batizado?

Bem, antes de tudo é preciso entender que o batismo ministrado por João Batista não era um sacramento, mas apenas um modo de levar as pessoas ao arrependimento, para esperar Jesus, e com ele a conversão e o Reino de Deus. O Batista é “a voz que clama no deserto” como tinha anunciado o profeta Isaías há 700 anos antes. João Batista proclamava “um batismo de arrependimento para a remissão dos pecados” (Lc 3,3). Uma multidão de pecadores, de publicanos e soldados, fariseus e saduceus e prostitutas vinham para ser batizados por ele. Jesus aparece, o Batista hesita, mas Jesus insiste.

Santo Agostinho diz que Jesus quis fazer o que ordenou que todos fizessem. Santo Ambrósio disse que: “A justiça exige que comecemos por fazer o que queremos que os outros façam, e exortemos os outros a nos imitarem pelo nosso exemplo”. São Tomás de Aquino diz que um objetivo foi a purificação das águas. Citando Santo Ambrósio, diz que o Senhor foi batizado, não por querer purificar-se, mas para purificar as águas… Desse modo, as águas tivessem a virtude de batizar. O mesmo argumento usa São João Crisóstomo (407), doutor da Igreja, de Constantinopla.

Sem dúvida, Jesus quis ser batizado também para nos mostrar a importância do sacramento do Batismo – hoje tão desprezado – como disse a Nicodemos: “Quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus” (Jo 3, 5).

O Batismo de Jesus significa a sua aceitação e inauguração de sua missão de “Servo sofredor” (Is 42,49,50,52). Ele se deixa contar entre os pecadores, se faz solidário com eles porque veio assumir o seu pecado; é, já, “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29). Assim, Jesus antecipa já o “Batismo” de sua morte sangrenta. Vem, já, “cumprir toda a justiça” (Mt 3,15), submete-se perfeitamente à vontade de seu Pai: aceita, por amor, este batismo de morte para a remissão de nossos pecados. E o Pai, diante dessa aceitação do Filho, responde: “Este é o meu Filho amado em quem coloco a minha complacência”. E o Espírito Santo, que Jesus possui em plenitude desde a sua concepção, vem “repousar” sobre Ele. Jesus é a fonte do Espírito para toda a humanidade. É Ele quem “batiza no Espírito Santo e no fogo” (Lc 3,16). No Batismo de Jesus, “abriram-se os Céus” (Mt 3,16) que o pecado de Adão havia fechado; e as águas são santificadas pela descida de Jesus e do Espírito, prelúdio da nova criação.

Prof. Felipe Aquino

Fonte: ttps://cleofas.com.br

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF