A Vida sem Deus
Deus é um
Pai amoroso que criou o homem para alcançar a felicidade. Mas o homem
desobedeceu e colocou a si mesmo antes do Amor de Deus.
12/06/2018
O Compêndio
do Catecismo da Igreja Católica começa com esta pergunta: “Qual é o plano de
Deus para o homem?” E responde: “Deus, infinitamente bem-aventurado e perfeito
em si mesmo, num desígnio de pura bondade, criou livremente o homem para o
tornar participante da sua vida bem-aventurada”[1]. Isto é, Deus criou o ser humano para ser
feliz, e o caminho para consegui-lo é estar com Ele (cfr. Mc 3,13), para
participar de sua vida feliz. Todos os ensinamentos de Jesus são dirigidos a
esta felicidade: "Eu vos disse isso, para que a minha alegria esteja em
vós, e a vossa alegria seja completa" (Jo 15,11). Deus Pai, como todos os
pais do mundo, quer que os seus filhos sejam felizes.
ESTE DESÍGNIO DE DEUS INSCREVE-SE NA PARTE MAIS
ÍNTIMA DO NOSSO SER: O SER HUMANO PROCURA, DESEJA E PERSEGUE A FELICIDADE EM
TODO O SEU AGIR
Este
desígnio de Deus, anseio de um amor pleno, inscreve-se na parte mais íntima do
nosso ser: o ser humano procura, deseja e persegue a felicidade em todo o seu
agir e, especialmente, em todos os seus desejos e amores. Já passaram vinte e
três séculos desde que Aristóteles percebeu isso e escreveu no primeiro
capítulo de sua Ética a Nicômaco, que todos os seres humanos concordam que a
felicidade é o bem supremo, em vista do qual escolhemos todos os outros bens
(saúde, sucesso, honra, dinheiro, prazeres etc.)[2].
A realidade
Em teoria,
qualquer pessoa sabe disso e poderia dizer: “O que eu quero é ser feliz”. Mas
ainda assim algo falha, porque muitas vezes o homem não consegue alcançar a
felicidade. Talvez tenhamos tido a experiência de olhar os rostos das pessoas
ao nosso redor durante uma viagem de metrô ou ônibus e descobrir rostos
marcados por tristeza, angústia e dor. “As pessoas morrem e não são felizes”,
sentenciou um escritor ateu do século XX com certo pessimismo. E pode ser que
nos perguntemos interiormente: “Senhor, o que acontece?”
O plano da
Criação incluía a nossa felicidade, mas algo deu errado. Nem
sempre conseguimos ser felizes e, muitas vezes, talvez por isso mesmo, não
conseguimos tornar os outros felizes. Além disso, não raramente causamos
sofrimento uns aos outros, agindo de maneira cruel e perversa. Muitas vezes,
temos que dizer: “Senhor, tenha misericórdia do seu povo! Senhor, perdão por
tamanha crueldade!” [3], como rezava o Papa Francisco durante sua
visita a Auschwitz-Birkenau, na Jornada Mundial da Juventude de 2016. Mais
tarde naquela noite, dirigindo-se à multidão da janela da sede da arquidiocese,
acrescentou: “Eu estive em Auschwitz, em Birkeanu. Quanta dor, quanta
crueldade! É possível que nós, seres humanos, criados à semelhança de Deus,
sejamos capazes de fazer essas coisas?”.
O que
acontece? Por que tantas pessoas não são felizes? Por que realidades que
prometem tanta felicidade – amizade, laços familiares, relações sociais, as
coisas criadas – às vezes são fonte de tanta insatisfação, amargura e tristeza?
Como é possível que nós, os seres humanos, sejamos capazes de produzir tanto
mal? As respostas a essas perguntas dolorosas e pungentes concentram-se em uma
palavra: o pecado.
Inimigo da
felicidade
Etimologicamente,
a palavra “pecado” vem do latim peccatum, que significa: “crime,
falta ou ação culpável”. Em grego, o idioma do Novo Testamento, “pecado” é
chamado hamartia, que significa: “falha do objetivo, errar o alvo”,
e se aplicava especialmente ao guerreiro que falhasse no alvo com a sua lança.
Finalmente, em hebraico, a palavra comum para “pecado” é jattá'th,
que também significa errar no sentido de não atingir um
objetivo, caminho, meta ou alvo exato.
O PLANO DA CRIAÇÃO INCLUÍA A NOSSA FELICIDADE, MAS
'ALGO' DEU ERRADO
Assim
sendo, um primeiro significado do pecado é errar o alvo. Lançamos uma flecha
direcionada para a felicidade, mas perdemos o tiro. Neste sentido o pecado é um
erro, um trágico engano e, simultaneamente, uma farsa: procuramos a felicidade
onde ela não está (como na fama ou no poder), tropeçamos em nosso caminho até
ela (por exemplo, acumulando bens supérfluos que cegam o nosso coração às
necessidades dos outros) ou, pior, confundimos nosso desejo de felicidade com
outro amor (como no caso de um amor infiel). Mas sempre, por trás do pecado,
está a busca de um bem – real ou aparente – que pensamos que nos fará felizes.
Não entenderemos o pecado enquanto não soubermos detectar o anseio frustrado de
felicidade que o gera. Como Jesus disse: “Pois é de dentro, do coração humano,
que saem as más intenções: imoralidade sexual, roubos, homicídios, adultérios,
ambições desmedidas, perversidades; fraude, devassidão, inveja, calúnia,
orgulho e insensatez” (Mc 7,21-22). Às vezes, um desejo insistente por algo que
é pecado procede de uma carência no desejo fundamental de amor. Sentimos
angústia e tristeza, e pensamos – erroneamente – resolvê-la dessa forma. Por
exemplo, quem se sente pouco amado e carece de fortes laços afetivos, seja com
Deus, com a própria família ou amigos, prontamente reagirá com desconfiança e
agressividade, inclusive com injustiça, às pretensões alheias, para proteger-se
e sentir-se seguro; ou procurará um substituto para esse amor nos
relacionamentos descartáveis, no prazer ou nas coisas materiais.
Somente o
amor de Deus sacia[4]. Bento XVI o expressa desta forma: “A
felicidade é algo que todos querem, mas uma das maiores tragédias deste mundo é
que muitas pessoas nunca a encontram, porque a procuram nos lugares errados. A
chave para isso é muito simples: a verdadeira felicidade se encontra apenas em
Deus. Precisamos ter a coragem de depositar nossas mais profundas esperanças
somente em Deus, não no dinheiro, na carreira, no sucesso ou em nossos
relacionamentos pessoais, mas em Deus. Só ele pode satisfazer as necessidades
mais profundas do nosso coração”[5]. Por outro lado, quando nos esquecemos d’Ele,
é fácil ver a frustração, a tristeza e o desespero, consequências de um coração
insatisfeito. Por esta razão, o conselho de São Josemaria é cheio de
significado: “Não te esqueças, filho, que para ti na terra há apenas um mal,
que deves temer e evitar com a graça divina: o pecado”[6].
Ofensa a
Deus, Pai amoroso
O Compêndio
do Catecismo define o pecado como “uma ofensa a Deus, na desobediência a seu
amor”[7]. Muitas pessoas, no entanto, se perguntam: “É
realmente importante para Deus ou O afeta aquilo que eu faço ou inclusive o que
eu penso? Como posso ferir a Deus? Deus pode sofrer, padecer? Como posso
ofender a Deus, que é absolutamente transcendente?”
“É REALMENTE IMPORTANTE PARA DEUS OU O AFETA AQUILO
QUE EU FAÇO OU INCLUSIVE O QUE EU PENSO? COMO POSSO OFENDER A DEUS?”
Se por
ofensa entendemos causar um dano, evidentemente nada do que fazemos
pode ofender a Deus. Nada que eu possa fazer lesa a Deus. Mas
Deus é Amor, é um Pai cheio de amor por seus filhos e pode se compadecer de
nós. Além disso, Deus se tornou um de nós, para tomar sobre si os nossos
pecados e nos redimir. Bento XVI explicava isso em sua segunda encíclica:
“Bernardo de Claraval cunhou a maravilhosa expressão: Impassibilis est
Deus, sed non incompassibilis. Deus não pode padecer, mas pode compadecer.
O homem tem um valor tão grande para Deus que se tornou homem para poder
compadecer Ele próprio com o homem, de uma maneira muito real, em carne e
osso, como nos conta a história da Paixão de Jesus. Por esta razão, em cada dor
humana entrou aquele que compartilha o sofrer e o padecer. Daí que, em cada
sofrimento, se difunde a con-solatio, o consolo do amor participado
de Deus”[8]. São Paulo usará uma frase forte
para se referir ao mistério de Cristo: “Aquele que não conheceu o pecado, Deus
o fez pecado por nós” (2 Cor 5,21).
De certo
modo, Deus sofre porque o nosso pecado nos fere. Deus não é um ser caprichoso
que transforma em pecado as ações que são por si só indiferentes, e as proíbe
para que Lhe demonstremos nossa obediência evitando-as. Ele é um Pai amoroso
que nos diz o que pode nos prejudicar e impedir a felicidade a que somos
chamados. Seus mandamentos poderiam ser comparados a um manual de instruções do
homem – deve-se considerar que o conteúdo deste manual foi inscrito de alguma
forma na natureza criada do homem, e se dirige espontaneamente à sua
consciência, sem a necessidade de abrir as páginas do manual – para alcançar a
própria felicidade e não impedir a alheia.
O pecado
lesa o amor que Deus tem por nós, esse amor que quer nos fazer felizes. De
alguma forma, quando pecamos, é como se Deus se lamentasse em lágrimas: “Mas o
que você está fazendo, meu filho? Você não percebe que isso machuca você e meus
outros filhos? Não o faça! Não se engane! Veja que no pecado você não encontra
o que anseia, a felicidade, mas pelo contrário! Acredite em mim!”. É neste
sentido que se diz que o pecado é “ uma ofensa a Deus, na desobediência a seu
amor”[9]. Com nossas obras pecaminosas, nós ofendemos
o seu amor, duvidamos dele.
É bom
acrescentar que Deus nunca fica bravo conosco. Ele nunca revida, mesmo quando
pecamos. Nesses momentos, é como se Ele estivesse sofrendo conosco e por nós em
Cristo. Clemente de Alexandria dizia que “no seu grande amor pela humanidade,
Deus vai atrás do homem como a mãe voa sobre o passarinho pequeno quando este
cai do ninho; e se a serpente ameaça devorá-lo, esvoaça gemendo sobre os seus
filhotes (cfr. Dt 32, 11). Assim Deus busca paternalmente a criatura, cura-a
da sua queda, persegue a besta selvagem e recolhe o filho, animando-o a voltar,
a voar para o ninho”[10]. Deus é assim!
O PECADO NOS AFASTA DE DEUS. MAS ISSO NÃO É VERDADE
DO PONTO DE VISTA DE DEUS, MAS DO NOSSO. DEUS NÃO DEIXA DE NOS AMAR.
Deus é como
o pai da parábola do filho pródigo, vigiando o horizonte para o caso de que seu
filho pecador retorne (cfr. Lc 15,11-19). O pecado nos afasta de Deus. Mas isso
não é verdade do ponto de vista de Deus, mas do nosso. Há abundantes passagens
do Evangelho em que Jesus Cristo procura lidar com os pecadores e os defende
contra os ataques dos escribas e fariseus. Deus não se afasta de nós, não deixa
de nos amar. A distância é criada em nosso coração, da pele para dentro. Mas
Deus ainda está ligado a nós. Somos nós que nos fechamos ao seu amor. E um
passo de nossa parte é o suficiente para que a sua misericórdia entre em nossas
almas. “Levantou-se e veio ao encontro do seu pai. Quando ele ainda estava
longe, seu pai o viu e comoveu-se em seu interior e, correndo, lançou-se ao
pescoço e cobriu-o de beijos”(Lc 15,20). O pecado é o inimigo número um da
felicidade, mas tem pouco poder diante da misericórdia de Deus: “Somos todos
pecadores. Mas Ele nos ama, nos ama”[11]. Essa é a nossa esperança.
Atentado à
solidariedade humana
Depois de
discutir a ofensa contra Deus, o Compêndio acrescenta que o pecado, todo
pecado, “fere a natureza do homem e atenta contra a solidariedade humana”[12]. Na verdade, os dois elementos estão unidos,
porque o homem é social por natureza. Mas reparemos na segunda parte: atenta
contra a solidariedade humana. Diante dessa afirmação, algumas pessoas
questionam: “Por que o pecado pessoal é mau, se não interessa a outras pessoas,
se eu não faço mal a ninguém?” Na verdade, já vimos que, com o pecado, eu
sempre magoo alguém: eu mesmo. E, precisamente por causa disso, ofendo a Deus.
Mas agora se trata de ver que todo pecado, mesmo o mais oculto, fere a unidade
dos seres humanos.
O Gênesis
descreve como o primeiro pecado rompe o fio da amizade que unia a família
humana. Depois da queda, o homem e a mulher são mostrados como se estivessem
apontando um para o outro com o dedo acusador: “A mulher que me deste por
companheira, foi ela que me fez provar do fruto da árvore, e eu comi” (Gn
3,12), diz Adão. A relação entre eles, antes marcada pelo encanto amoroso, vem
sob o signo do desejo e da dominação: “Teus desejos te arrastarão para teu
marido, e ele te dominará” (Gn 3,16), diz Deus a Eva[13].
O PECADO SEMEIA DIVISÃO NOS CORAÇÕES DOS SERES
HUMANOS E SE INTERPÕE NA SUA CAMINHADA CONJUNTA PARA A FELICIDADE.
São João
Paulo II o explicava da seguinte maneira: “Visto que com o pecado o ser humano
se recusa a submeter-se a Deus, seu equilíbrio interno também é quebrado e as
contradições e conflitos são desencadeados dentro dele. Dilacerado dessa
maneira, o ser humano quase inevitavelmente provoca uma ruptura em suas
relações com outros seres humanos e com o mundo criado”[14]. De fato, aqueles que se deixam levar por
pecados internos de ressentimento ou crítica já estão tratando os outros
injustamente, e é impossível que eles não se manifestem externamente na omissão
do amor devido ao próximo, ou mesmo em faltas externas de caridade com ele.
Quem comete pecados de impureza, mesmo que sejam interiores, corrompe sua
capacidade de olhar e, portanto, de amar, e já está tratando os outros, pelo
menos alguns, como objetos, e não como pessoas. Quem só pensa egoisticamente em
seu benefício, dificilmente pode parar de cometer injustiças e maltratar o
ambiente que compartilha com os outros. Em resumo, o pecado introduz uma
divisão interna na pessoa, uma perda de liberdade tal que “não é incomum que a
pessoa faça o que não quer e deixe de fazer o que gostaria. Por essa razão,
sente em si mesma a divisão que provoca na sociedade tantas e tão sérias
discórdias”[15].
O pecado
semeia divisão nos corações dos seres humanos e se interpõe na sua caminhada
conjunta para a felicidade. Dada a sua dureza, poderia se insinuar a tentação
do pessimismo e da tristeza, especialmente se deixarmos de olhar para Cristo.
Contemplar a passagem de Jesus carregando a cruz, com dor mas sereno, frágil
mas majestoso, enche-nos de esperança e otimismo, porque por mais grandiosas
que sejam as nossas misérias e pecados, aí está Ele, que com “a sua queda nos
levanta [com] a sua morte nos ressuscita. À nossa reincidência no mal, responde
Jesus com a sua insistência em redimir-nos, com abundância de perdão. E, para
que ninguém desespere, torna a erguer-se, fatigosamente abraçado à Cruz”[16].
por: José
Brage
tradução:
Mônica Diez
[1]Compêndio do Catecismo da Igreja Católica,
n.1.
[2]Cfr. Aristóteles, Ética a Nicómaco.
[3]Francisco, Visita a Auschwitz, 29-VIII-2016.
[4]Compêndio do Catecismo da Igreja Católica,
n. 361
[5]Bento XVI, Discurso aos alunos do
Colégio Universitário Santa Maria de Twickenham, Londres, 17-X-2010
[6]São Josemaria, Caminho, n. 386.
[7]Compêndio do Catecismo da Igreja Católica,
n.392
[8]Bento XVI, Enc. Spe Salvi (30-XI-2007),
n. 39.
[9]Compêndio do Catecismo da Igreja Católica,
n.392.
[10]Clemente de Alexandria, Protréptico, 10.
[11]Francisco, Palavras da janela da Cúria de
Cracóvia durante a Jornada Mundial da Juventude, 29-VIII-2016.
[12]Compêndio do Catecismo da Igreja Católica,
n.392.
[13]Cfr. Catecismo da Igreja Católica,
n.400.
[14]São João Paulo II, Exortação apostólica Reconciliatio
et Paenitentia (2.XII.1984), n.15.
[15]Concilio Vaticano II, Constituição
pastoral Gaudium et spes (7.XII.1965), n.9.