A Misericórdia na Sagrada Escritura (Opus Dei)
A Misericórdia na Sagrada Escritura
Neste
editorial da série sobre a misericórdia, analisam-se as Escrituras, Palavra de
Deus, onde a misericórdia de Deus é revelada.
22/08/2016
Deus é
qualificado também como janún (misericors). Este
adjetivo, que pode ser traduzido por “compassivo”, se deriva da
palavra jen, que significa “graça, favor”: algo que se outorga
por pura benevolência, que vai além da justiça estrita. Expressa a atitude de
Deus que se reflete em um dos mandamentos do código da Aliança: “Se tomares
como penhor o manto de teu próximo, lhe devolverás antes do pôr-do-sol, porque
é a sua única cobertura, é a veste com que cobre sua nudez; com que dormirá
ele? Se me invocasse, eu o ouviria, porque sou misericordioso (janún)”[22]. Trata-se
de um mandato inspirado pela compaixão ao pobre, que não consegue pagar o que
em justiça deveria: Deus não tolera vê-lo sofrendo, e, nessa compaixão – que
Deus sabe inspirar aos seus –,abre-se um caminho à verdadeira justiça: “porque
eu quero o amor mais que os sacrifícios, e o conhecimento de Deus mais que os
holocaustos”[23]. Quem
conhece a Deus de verdade sabe reconhecer o irmão que sofre. Se pedirmos ao
Senhor esse olhar compassivo, quantas oportunidades de servir aos outros
descobriremos! O ano jubilar é uma boa ocasião para que, junto com outras
pessoas, façamos alguma obra de misericórdia corporal no lugar em que nos
encontramos.
O Deus fiel
que sabe esperar
Esse salmo
diz também que o Senhor é um Deus de muita misericórdia, multae
misericordiae (jésed), utilizando, nesse caso, uma palavra do vocabulário
familiar, que se poderia traduzir literalmente por “piedade”. Refere-se, acima
de tudo, à bondade própria das relações dos pais com os filhos, destes com seus
pais, ou dos esposos entre si. Por isso, quando Jacó, já muito idoso, está a
ponto de morrer, chama a seu filho José e lhe pede: “(...) promete-me, com toda
a piedade(jésed) e fidelidade, que não me enterrarás no Egito”[24]. Ou seja,
pede-lhe que se porte como corresponde a um filho bom e cumpra esse último
desejo de seu pai. Dizer que Deus é pleno em jésed é a mesma
coisa que afirmar que Deus nos olha sempre como seus filhos: seus dons e sua
vocação são irrevogáveis[25]. “Deste
Deus misericordioso também se diz que é “lento para a ira”,
literalmente, tem um “longo respiro”, ou seja, o amplo respiro da
longanimidade e da capacidade de suportar. Deus sabe esperar, os seus
tempos não são os tempos impacientes dos homens; Ele é como o sábio agricultor
que sabe esperar, dá tempo à boa semente para crescer, não obstante o joio
(cf. Mt 13, 24-30)”[26].
A MISERICÓRDIA NÃO É UMA COMÉDIA QUE DISSIMULA AS
OFENSAS E AS FERIDAS COMO SE NÃO TIVESSEM EXISTIDO
Por último,
afirma-se que a misericórdia do Senhor está presidida pela abundância de
verdade: et veritatis (émet). Efetivamente, a misericórdia não é
uma comédia que dissimula as ofensas e as feridas como se não tivessem
existido: as feridas não se enfaixam “sem antes serem tratadas e medicadas”[27], porque se
infeccionariam. O Senhor “é Médico e cura o nosso egoísmo se deixamos que sua
graça penetre até o fundo da alma”.[28] Deixar
que nos cure significa reconhecer-nos pecadores, mostrar-lhe as feridas com a
disposição de colocar os meios oportunos para tratá-las. “Se alguma vez cais,
filho, acode prontamente à Confissão e à direção espiritual: mostra a ferida!,
para que te curem a fundo, para que te tirem todas as possibilidades de
infecção, mesmo que te doa como numa operação cirúrgica.”[29]. E então o
Senhor promete que “se vossos pecados forem escarlates, tornar-se-ão brancos
como a neve! Se forem vermelhos como a púrpura, ficarão brancos como a lã!”[30].
Uma relação
estável e serena com Deus e com os outros somente se pode construir sobre a
verdade. A verdadeira felicidade – escreve Santo Agostinho, refletindo sobre a
nossa vida na terra e a que nos espera no céu – é a alegria da verdade, gaudium
de veritate[31]. Viver na
verdade é muito mais que “saber” algumas coisas. Por isso o termo hebreu émet
significa tanto “verdade” como “fidelidade”: a pessoa sincera é fiel, e quem
deseja ser fiel ama a verdade. “Uma ‘lealdade’ sem limites: eis aqui a última
palavra da revelação de Deus a Moisés. A fidelidade de Deus nunca falha, porque
o Senhor é o guardião que, como diz o Salmo, não dorme, mas vela continuamente
sobre nós para levar-nos para a vida: ‘Não permitirá que teu pé escorregue, teu
guardião não dorme, não dorme nem repousa o guardião de Israel (...). O Senhor
te guarda de todo o mal, ele guarda a tua alma; o Senhor guarda tuas entradas e
saídas agora e para sempre (121, 3-4.7-8)’”.[32]
Resumindo,
no Antigo Testamento, a misericórdia divina é a acolhida materna e
profundamente carinhosa que o Senhor oferece a quem se encontra necessitado e
reconhece a verdade de sua situação: suas debilidades, erros, pecados ou
infidelidades. Deus não somente o liberta daquilo que carrega sobre ele e o
oprime, mas também o cura e restaura a sua dignidade de filho.
O rosto da
misericórdia do Pai
“O que era
desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos olhos, o
que temos contemplado e as nossas mãos têm apalpado no tocante ao Verbo da
vida...”[33]. Essas
palavras vibrantes do apóstolo a quem Jesus amava chegam até nós com a mesma
força com que foram escritas. Em Jesus, o apóstolo viu e tocou o amor de Deus
coisa que todos os cristãos podemos fazer, “para que nossa alegria seja
completa”[34].
Jesus
Cristo “é a misericórdia divina em pessoa: encontrar Cristo significa encontrar
a misericórdia de Deus”[35]. Por isso,
São Josemaria nos convidava a não nos cansarmos de saborear “as cenas
comoventes em que o Mestre atua com gestos divinos e humanos ou relata com
modos de dizer humanos e divinos a história sublime do perdão, do Amor
ininterrupto que tem pelos seus filhos”[36].
O AMOR INCONDICIONAL DO SENHOR CHEGA À SUA MÁXIMA
EXPRESSÃO NA SUA PAIXÃO. AÍ TUDO É PERDÃO AOS HOMENS, PACIÊNCIA DIANTE DOS
NOSSOS PECADOS, PALAVRAS SEM NENHUM SABOR DE AMARGURA.
Cristo é o
bom samaritano[37], que não
passa longe de quem padece qualquer necessidade espiritual ou material, mas que
se comove e põe remédio à desgraça. “Deus se mistura com nossas misérias, se
aproxima das nossas feridas e, com suas mãos, faz com que sejam curadas. Fez-se
homem para ter mãos. É um trabalho de Jesus, pessoal: um homem cometeu o
pecado, um homem vem curá-lo”[38]. Toda a
vida de Jesus está cheia de gestos de misericórdia: perdoa os pecados do
paralítico que descem numa maca pelo teto da casa em que o Senhor estava[39],
ressuscita e entrega vivo à sua mãe, a viúva de Naim, o seu filho único [40], alimenta
milagrosamente as multidões que o seguem para que não desfaleçam[41]. “O que
movia Jesus era apenas a misericórdia, com a qual lia no coração dos seus
interlocutores e dava resposta às necessidades mais autênticas que tinham”.
Esse amor
incondicional do Senhor chega à sua máxima expressão na sua Paixão. Aí tudo é
perdão aos homens, paciência diante dos nossos pecados, palavras sem nenhum
sabor de amargura. Cravado em um madeiro, comove-se diante da confissão sincera
de um ladrão – “para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos
crimes, mas este não fez mal algum”[42]– e
imediatamente lhe pede: “Jesus, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu
Reino!”[43]. Trata-se
de uma imagem perfeita da misericórdia: Jesus acolhe a petição daquele homem
necessitado de carinho, que reconhece com simplicidade o mal em sua vida;
perdoa-o, e abre-lhe a porta de entrada para o céu: “Em verdade te digo: hoje
estarás comigo no paraíso”[44]. Essa
resposta de Jesus mostra que Ele esperava esse momento, como o espera para cada
um de nós uma vez, muitas vezes. “Jesus acolhia com bondade aos pecadores. Se
pensarmos de modo humano, o pecador seria um inimigo de Deus, mas Ele se
aproxima deles com bondade, amava-os e mudava o seu coração”[45].
Nossa
Senhora estava ao pé da cruz. Confiados na sua intercessão, podemos nos dirigir
a Deus com São Josemaria, que seguindo uma inspiração divina, rezava: “Adeamus
cum fiducia ad thronum gloriae ut misericordiam consequamur”[46] –
“Aproximemo-nos, pois, confiadamente do trono da graça, a fim de alcançar
misericórdia”.
Francisco
Varo
Tradução:
Mônica Diez
[22] Ex
22, 25-26.
[23] Os
6,6.
[24] Gn
47,29.
[25] Cfr.
Rm 11, 29.
[26] Francisco,
Audiência, 13-I-2016.
[27] Francisco,
Discurso, 18-X-2014.
[28] São
Josemaria, É Cristo que passa, nº. 93.
[29] São
Josemaria, Forja, nº. 192.
[30] Is
1,18
[31] Santo
Agostinho, Confissões, X.23.33.
[32] Francisco,
Audiência, 13-I-2016.
[33] I Jo
1,1.
[34] I Jo
1,4.
[35] Joseph
Ratzinger, Homilia, Missa pro eligendo pontifice, 18-IV-2005.
[36] Amigos
de Deus, n. 216.
[37] Lc
10, 33-35.
[38] Francisco,
Homilia em Santa Marta, 22-X-2013.
[39] Cfr.
Mc 2, 3-12.
[40] Cfr.
Lc 7, 11-15.
[41] Cfr.
Mt 14, 13-21; 15, 32-39.
[42] Francisco, Misericordiae
vultus, n. 8.
[43] Lc
23, 41-42.
[44] Lc
23, 43.
[45] Francisco,
Audiência, 20-II-2016.
[46] Cfr.
Hb 4, 16.
Fonte:
https://opusdei.org/pt-br