A
Segunda Pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa
"O
espírito do mundo age de modo análogo. Penetra em nós por mil e um canais, como
o ar que respiramos, e, uma vez dentro, muda os nossos modelos operacionais: ao
modelo “Cristo”, entra no lugar o modelo “mundo”. O mundo também tem a sua
“trindade”, os seus três deuses, ou ídolos para se adorar: prazer, poder,
dinheiro. Todos depreciamos os desastres que eles provocam na sociedade, mas
estamos certos de que, em nossa pequenez, nós mesmos não somos completamente
imunes a eles?"
Razão e fé
Deste ponto
de vista, a luz que é Cristo tem desde sempre um concorrente aguerrido: a razão
humana. Falamos disso não com intuito polêmico ou apologético, ou seja, para
saber o que responder aos adversários da fé (eu faltaria com meu propósito
inicial), mas para nós mesmos nos confirmarmos na fé.
Os debates
sobre fé e razão – mais exatamente, seria dizer sobre razão e revelação – são
anulados, a meu ver, por uma radical assimetria. O fiel compartilha com o ateu
a razão; o ateu não compartilha com fiel a fé na revelação. O fiel fala a
língua do interlocutor ateu; este não fala a língua do homólogo fiel.
Justamente
por isso, o debate mais convincente sobre o tema “fé e razão” é aquele que
acontece na mesma pessoa, entre a sua fé e a sua razão. Temos exemplo célebres
na história do pensamento humano, em homens nos quais não se pode pôr em dúvida
uma idêntica paixão tanto pela fé quanto pela razão: Agostinho de Hipona, Tomás
de Aquino, Blaise Pascal, Søren Kierkegaard, John Newman, aos quais poderíamos
acrescentar, com plena razão, João Paulo II, Bento XVI... A conclusão a que
chegou cada um deles é que o ato supremo da razão é reconhecer que há algo que
a supera. Este é também o ato que mais honra a razão porque indica a sua
capacidade de transcender a si mesma. A fé não se opõe à
razão, mas supõe a razão, exatamente como “a graça supõe a
natureza”[2].
Há também
um outro equívoco a ser esclarecido a respeito do diálogo entre fé e razão. A
crítica de fundo dirigida ao fiel é que ele não pode ser objetivo, a partir do
momento em que a sua fé lhe impõe, em princípio, a conclusão à qual chegar, e
constitui, por isso, uma pré-compreensão e um pré-juízo. Não se leva em conta
que o mesmo “pré-juízo” age, em sentido oposto, também no cientista ou filósofo
não crente, e de modo bem mais radical. Se ele dá por certo que Deus não
existe, que não o sobrenatural e que não é possível o milagre, também a sua
conclusão não poderá ser senão uma, e já dada em princípio.
Eis um
exemplo entre muitos. Em base à visão que tinha da realidade, poderia Freud
admitir que o “amor universal” de Francisco de Assis tivesse um componente
sobrenatural, chamado graça? Certamente não, e, de fato, ele faz disso uma
“derivação do amor genital”. Francisco de Assis, escreve ele, “é aquele que foi
mais longe ao utilizar o amor em vantagem do seu sentimento interior de
felicidade”[3].
Em outras palavras, amava Deus, os homens, toda a criação e, de modo especialíssimo,
Jesus Crucificado, porque isto o gratificava, o fazia estar bem!
O homem
moderno, no lugar da verdade, põe como valor supremo a busca da
verdade. Lessing escreveu: “Se Deus tivesse segurado toda a verdade na sua
direita, e na sua esquerda apenas a aspiração sempre viva à verdade, ainda que
na condição de estar eternamente no erro, e me dissesse: ‘Escolhe!’,
inclinar-me-ia humildemente à esquerda dizendo: ‘Esta, Pai! A pura verdade
pertence só a ti’”[4].
O motivo
disso é simples. Enquanto se está em fase de busca, é ele, o homem, aquele quem
conduz o jogo, o protagonista, enquanto que ao lado da Verdade reconhecida como
tal, não tem mais escape e deve prestar “a obediência da fé”. A fé põe o
absoluto, enquanto a razão gostaria de prosseguir indefinidamente a discussão.
Como a bela Sherazade de As mil e uma noites, a razão humana tem
sempre uma nova história para contar, para retardar a própria rendição.
Há somente
duas possíveis resoluções para a tensão entre fé e razão: ou restringir a fé
“dentro dos limites da pura razão”, como se propunha o filósofo Kant, ou
infringir os limites da pura razão para vagar por um horizonte sem limites. Um
pouco como o Ulisses dantesco que, tendo chegado às colunas de Hércules,
consideradas então o limite terra, decide não se deter, mas fazer “dos remos
asas na empresa ousada”[5].
Devo,
contudo, ser coerente com a promessa feita no início. O discurso sobre fé e
razão, antes de ser um debate entre “nós e eles”, entre fiéis e não fiéis, deve
ser um debate “entre nós e nós”, isto é, entre os próprios fiéis. A pior
espécie de racionalismo, de fato, não é aquele externo, mas o interno. São
Paulo escrevia aos Coríntios:
Também a
minha palavra e a minha pregação não se apoiavam na persuasão da sabedoria, mas
na manifestação do Espírito e do poder, para que a vossa fé se fundamentasse
não na sabedoria humana mas no poder de Deus (1Cor
2,4-5).
E ainda:
Pois as
armas do nosso combate não são carnais. São armas poderosas aos olhos de Deus,
capazes de derrubar fortalezas, destruir sofismas e todo orgulho intelectual
que se levanta contra o conhecimento de Deus e capazes de subjugar todo
pensamento, para torná-lo obediente a Cristo (2Cor 10,3-5).
Frequentemente
se tem verificado, infelizmente, o que o Apóstolo temia. A teologia,
especialmente no Ocidente, tem sempre mais se afastado do poder do Espírito,
para favorecer a sabedoria humana. O racionalismo moderno tem pretendido que o
cristianismo apresentasse a sua mensagem de modo dialético, submetendo-o, ou
seja, em tudo e por tudo, à busca e à discussão, de modo que ele pudesse se
colocar no quadro geral – aceitável também filosoficamente – de um esforço
comum e sempre provisório de autocompreensão do homem e do universo. Assim
fazendo, porém, o anúncio de salvação sobre Cristo morto e ressuscitado era
subjugado a uma diversa e suposta instância superior. Não era mais um querigma,
mas somente uma hipótese.
O perigo
inerente neste modo de fazer teologia é que Deus se torna objetivado. Torna-se
um objeto do qual se fala, não um sujeito com o qual – ou na presença do qual –
se fala. Um “ele” – ou, pior, um isso –, jamais um “tu”. É o contragolpe de se
ter feito da teologia uma “ciência”. O primeiro dever de quem faz ciência é ser
neutral diante do objeto da própria pesquisa; mas podemos ser neutrais quando
se trata de Deus? Foi este o motivo principal que me induziu, a uma certa
altura da vida, a abandonar o ensinamento acadêmico da teologia, para me
dedicar, em tempo integral, à pregação. A consequência daquele modo de fazer
teologia, de fato, é que ela se torna sempre mais um diálogo com a elite
acadêmica do momento, e sempre menos um nutrimento para a fé do povo de Deus.
Desta
situação, só se sai acompanhando o estudo com a oração, falando a Deus,
não falando sempre e só de Deus. Santo Agostinho realizou a
sua teologia mais duradoura falando com Deus nas Confissões.
“Se és teólogo, rezarás realmente, e se rezas realmente, serás teólogo”, dizia
um antigo Padre do deserto[6].
Ajuda também a contemplação e a imitação da Mãe de Deus. Em sua vida terrena,
ela não teve nada a ver com ideias abstratas sobre Deus e sobre seu filho
Jesus, mas só com suas vivas realidades.
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Tradução Frei Ricardo Farias, OFMCap
Notas:
[2] Cf.
Tomás de Aquino, S.Th. I, q.2, a.2, ad 1.
[3] Cf.
Sigmund Freud, Il disagio della civiltà, IV.
[4] Cf.
Gotthold Lessing, Eine Duplik, I, in Werke 3,
Zrich 1974, p.149.
[5] Cf.
Dante Alighieri, Inferno, XXVI,125.
[6] Cf.
Evágrio do Ponto, De oratione, 60 (PG 79,1180).
Fonte: https://www.vaticannews.va/pt