Quem foi São Tomás de Aquino, intelectual da Idade Média que influenciou a filosofia ocidental.
Autor, Edison Veiga
Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
7 março 2024
Vida
Nascido em uma pequena cidade na província do Lácio
— na época, Reino da Sicília, hoje Itália —, Tomás de Aquino era filho de um cavaleiro
militar. Seus pais, o incentivaram a estudar e acabaram mandando-o para o
equivalente a uma universidade da época, em Nápoles.
Foi lá que, ao que tudo indica, ele tomou contato
pela primeira vez com a obra de Aristóteles. Durante esse período, acabou tendo
contato com um pregador dominicano que o recrutou, aos 19 anos, para a chamada
Ordem dos Pregadores — também conhecida como Ordem de São Domingos.
Seus pais foram contra o ingresso na confraria
religiosa e tentaram impedi-lo. Quando os dominicanos determinaram que Tomás
fosse para Roma e, de lá, para Paris, familiares dele armaram uma emboscada e o
capturaram, levando-o de volta ao castelo de seus pais. Ele teria ficado detido
por cerca de um ano e, conta-se, até mesmo uma prostituta chegou a ser
contratada para demovê-lo da ideia da vida religiosa.
Percebendo que nada iria resolver a questão, sua
mãe colaborou para que ele fugisse e retornasse aos dominicanos. Tomás de
Aquino foi para Nápoles, depois para Roma e, em seguida, acabou enviado para
estudar na Universidade de Paris.
Quando concluiu sua formação, em 1259, retornou a
Nápoles e iniciou sua carreira como pregador dominicano. Circulou por várias
regiões da península itálica e foi nesse período que escreveu sua obra
principal, a ‘Suma Teológica’.
Nove anos depois, foi enviado novamente para Paris,
agora como regente mestre dos religiosos que ali estudavam. Ele ficaria lá até
1272, quando obteve dos dominicanos a autorização para fundar um centro de
estudos onde quisesse — escolheu Nápoles.
Professor na PUC-SP e na Faculdade São Bento, o
teólogo, filósofo e jornalista Domingos Zamagna destaca à BBC News Brasil a
erudição de Aquino, um onívoro cultural que buscava os saberes mais variados
possíveis.
“A teologia é um esforço de conhecer Deus, e só
podemos conhecê-lo, além do que ele próprio revelou, ou pela via negativa, ‘o
que ele não é’, ou pela via analógica, ‘ele é semelhante a…’ Como o ser humano
é ‘a imagem e semelhança de Deus’, só conheceremos Deus se soubermos
profundamente o que é o ser humano”, reflete ele.
“Não deveria nos causar espanto que Tomás tenha se
lançado no estudo da biologia, da política, da ética, da psicologia, da
antropologia, da economia, da estética, etc., para mergulhar no que é a
essência do ser humano”, acredita Zamagna.
“Para isso, estudou Aristóteles, que entendeu o ser humano dentro de uma relação unitária, contra o dualismo de Platão. Daí quis conhecer a causa última da realidade, a causa das causas, que é Deus. Daí desenvolveu o estudo propriamente teológico.”
“Ele viveu como grande intelectual, mas sempre foi visto
com certa desconfiança por uma ortodoxia que não via com bons olhos a entrada
do pensamento aristotélico para subsidiar os dogmas da Igreja Católica”, pontua
o teólogo Moraes.
“A filosofia dele podia ser muito arriscada, porque
de repente podia [ser interpretada como se viesse a] não concordar com a ideia
de que Deus criou o mundo, com a ideia da imortalidade da alma... Tudo muito
perigoso. Era preciso saber selecionar e, nesse sentido, o Tomás de Aquino foi
mestre”.
Aquino buscou uma explicação racional para a fé.
“Ele partiu da revelação, acreditava na revelação de Deus, mas dizia que o
conhecimento era revelado através da fé. Como teólogo, ele usou de todo o
conhecimento filosófico extraído da tradição aristotélica para fundamentar sua
fé”, detalha Moraes. “Podemos dizer que, em Tomás de Aquino, a razão está à
serviço da fé.”
Em 1274, foi convocado pelo papa Gregório 10º
(1210-1276) para participar do Concílio de Lyon. A caminho de Roma, montado em
um burro, bateu a cabeça em um galho de uma árvore tomada e ficou seriamente
ferido. Tentou seguir viagem mas não conseguiu. Acabou sendo abrigado em uma
abadia que havia nas proximidades.
Depois de alguns dias, não resistiu. Morreu em 7 de
março de 1274, há exatos 750 anos.
Santo
Tomás de Aquino seria canonizado em 1323, pelo papa
João 22 (1249-1334).
O filósofo Andrey Ivanov, professor na Universidade
Estadual Paulista (Unesp), comenta à BBC News Brasil que 2024 está no meio de
três anos especiais para aqueles que admiram Tomás de Aquino. No ano passado,
2023, foram lembrados os 700 anos que ele passou a ser considerado santo.
Neste, celebram-se os 750 anos de sua morte. Em 2025 serão recordados os 800
anos de seu nascimento.
“Em vida e logo após a sua morte, as doutrinas de
Tomás não suscitaram um consenso unânime e foram duramente atacadas, sobretudo
por teólogos e em particular pelos franciscanos”, comenta Ivanov.
A canonização de Tomás de Aquino também não foi uma
unanimidade na cúpula católica da época. Havia um ingrediente político. João 22
tinha sido auxiliado por dominicanos no seu processo de escolha para o trono
papal e, portanto, devia gratidão a esse grupo. “Uma forma de reconhecer isso
era escolher um membro da ordem para ser canonizado”, conta Moraes. O nome de
Aquino foi o segundo que lhe foi apresentado.
“E ele era um admirador, tinha obras suas na
biblioteca e fazia uso das mesmas. Até hoje no Vaticano há textos [de Tomás de
Aquino] com anotações desse papa, o que Mostar que ele tinha apreço enorme pela
obra”, comenta o teólogo.
Boccato ressalta que, “apesar de ser reconhecido
como grande filósofo e teólogo, e o foi”, Tomás de Aquino se notabilizou também
“como um pregador, um verdadeiro contemplativo da Palavra de Deus de onde ele
extraiu o sentido para sua vida”.
“Então, o fato de ele ter sido santo dá-se pelo seu
esforço de, pela fé, esperança e caridade, viver de modo perfeito as virtudes
teologais, mas também ser um irmão, frade, que colocou a caridade como centro
de sua vida”, acrescenta ele.
Para Ivanov, “pode-se dizer que a sua santidade é a
santidade da inteligência”. “Ele se santificou na sua obra de filósofo e
teólogo. A sua busca da verdade natural e supranatural se identificou com sua
busca de Deus”, analisa o professor.
“Ele se tornou santo, reconhecido pela Igreja, pelo
fato de viver da e para a caridade e manifestá-la na relação com o próximo e
traduzi-la em reflexão refinadíssima”, avalia Boccato. Para o professor, São
Tomás “era um homem de profunda oração, vida comunitária, pregação e
sensibilidade humana”.
“Não tenho dúvidas que a sua santidade se configura
nesta articulada relação entre vida contemplativa, reflexão
filosófico-teológica e apostolado, diálogo produtivo com muçulmanos e árabes”,
salienta. “Tornou-se santo porque buscou viver e aplicar o evangelho no seu
cotidiano e ao longo de sua vida na convivência com os confrades e no fértil
apostolado.
Legado
Séculos depois, seu legado permanece. “O que acho
muito bonito em São Tomás é aquilo que, a meu ver, fez o tomismo se enraizar na
Igreja e se manter vivo até hoje: é essa ideia de uma cooperação entre a
filosofia e a teologia, uma espécie de harmonia, a gente pode dizer, entre fé e
ciência”, comenta Maerki.
“A justificativa para isso é que, para Tomás de
Aquino, a razão, que é o princípio básico da filosofia, seria um estatuto
criado por Deus. Então mesmo a razão que norteia o pensamento filosófico possui
sua raiz com Deus. E a fé é uma espécie de revelação do próprio Deus”, explica
o pesquisador. “Nesse sentido, a fé e a razão não podem se contradizer já que,
segundo Tomás de Aquino, a fonte é a mesma, é o ser divino, o próprio Deus.”
Zamagna argumenta que “todos os que desejam uma
prática religiosa baseada na fé mas sem abdicar das exigências racionais há de
se beneficiar com o conhecimento da produção intelectual de São Tomás”.
“Não há filósofo que, mais cedo ou mais tarde,
deixe de se questionar sobre a origem e o fim da vida. Só não o fará quem for
preguiçoso ou pouco exigente”, diz.
“No meio de tantas buscas e respostas, o pensamento
de São Tomás permanece válido e atualíssimo, corresponde a uma ajuda para
responder a um dos maiores anseios do ser humano. Ser ateu é bastante fácil.
Difícil é projetar-se na pesquisa para encontrar uma resposta racional às
alegrias e esperanças da comunidade humana.”
Em 1879 o papa Leão 13 (1810-1903) publicou a
encíclica ‘Pai Eterno’, na qual promoveu um renascimento do tomismo como
sistema teológico e filosófico. “[O documento] propunha uma junção entre
filosofia e teologia, entre razão e fé, como aquela que já havia sido realizada
por mestres medievais, em particular por Tomás. De modo que Tomás merecia ser
ensinado nos institutos e universidades da Igreja”, relata Ivanov.
“A encíclica surtiu efeitos positivos para
impulsionar os estudos de filosofia medieval e novos projetos de edição das
obras dos grandes mestres da escolástica, a partir naturalmente das obras de
Tomás”, completa.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese