A terceira pregação da Quaresma do cardeal
Cantalamessa
"Impusemo-nos em não falar,
nestas meditações, do que devemos fazer pelos outros, mas somente do que Jesus
é e faz por nós: de nos identificarmos com as ovelhas, mão com o pastor. Mas
devemos fazer uma pequena exceção nesta ocasião. Apesar de todas as exortações
do Evangelho, nem sempre está em nosso poder nos livrarmos do medo e da
angústia. Em contrapartida, está em nosso poder libertar alguém (ou ajudá-lo a
se libertar) deles."
Neste
ponto, devemos trazer à mente o intuito ao qual nos propusemos com estas
meditações: um intuito pessoal, mais que “pastoral”, fazer penetrar o Evangelho
em nossa vida, para depois poder anuncia-lo ao mundo com mais credibilidade.
O discurso
de Jesus tem dois atores: o pastor e o rebanho, ou seja, no singular, cada
ovelha individualmente. Com qual dos dois nos identificaremos? Santo Agostinho,
no aniversário da sua ordenação episcopal, dizia ao povo: “Para vós sou bispo,
convosco sou cristão!”: “vobis sum episcopus, vobiscum sum christianus”[1].
E em outra ocasião: “Em relação a vós, somos como pastores, mas, em relação ao
sumo Pastor, somos ovelhas como vós”[2].
Esqueçamos, portanto, o nosso papel – o seu, de pastores, e o meu, de pregador
– e sintamo-nos apenas por uma vez e unicamente ovelhas do rebanho. Recordemos
a pergunta que importa a Jesus no diálogo de Cesaréia: “Para vós, quem sou?”.
Como se dissesse: “Esquecei por um momento quem sou eu para as pessoas e
concentrai-vos sobre vós mesmos”.
O grande
psicólogo Carl Gustav Jung define o psiquiatra: “A wounded healer”: um
curador ferido. O sentido da sua teoria é que é necessário conhecer as próprias
feridas psicológicas para tratar daquelas dos outros e que conhecer as feridas
dos outros ajuda a tratar as próprias. A intuição do psicanalista vale também
para as feridas espirituais. O pastor da Igreja é também ele um wounded
healer”, um enfermo que deve ajudar os outros a curar.
Busquemos
ver qual é a principal doença da qual devemos nos tratar, para tratar os
outros. Qual é a coisa que, do início ao fim da Bíblia, vem inculcada nas
ovelhas em relação a Deus-Pastor? É para não ter medo! As palavras se acumulam
na memória, neste ponto, começando por aquelas de Jesus: “Não tenhas medo,
pequeno rebanho” (Lc 12,32), “Por que tendes medo, fracos na
fé”, disse aos apóstolos, após ter acalmado a tempestade (Mt 8,26).
Recordemos também algumas palavras familiares dos Salmos, não como simples
citações bíblicas, mas fazendo-as nossas enquanto as escutamos:
O Senhor é
o meu pastor,
nada me falta...
Mesmo se eu
tiver de andar por um vale de sombra mortal,
não temerei os males, porque estás comigo (Sl 23,1.4).
O Senhor é
minha luz e minha salvação: de quem terei medo?
O Senhor é o refúgio da minha vida:
diante de quem tremerei? (Sl 27,1).
Falamos,
portanto, deste “mal obscuro” do medo, que tem tanto poder para roubar dos
homens e mulheres a alegria de viver. O medo é a nossa condição existencial;
ele nos acompanha desde a infância até a morte. A criança tem medo de muitas
coisas; nós as chamamos de terrores infantis; o adolescente tem medo do sexo
oposto e se envolve às vezes em complexos de timidez e de inferioridade; Jesus
deu um nome aos nossos principais medos de adultos: medo do amanhã – “que
comeremos? – (Mt 6,31), medo do mundo e dos poderosos – “dos que matam o corpo”
(Mt 10,28). Sobre cada um destes medos, pronunciou o seu: Nolite
timere! Esta não é uma palavra vazia e impotente; é uma palavra
eficaz, quase sacramental. Como todas as palavras de Jesus, opera o que
significa; não é como o simples: “Tem coragem!” que, os seres humanos,
dizemo-nos uns aos outros, seres humanos.
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Mas o que é
o medo? Deixemos de lado a angústia existencial sobre a qual discutem os
filósofos há um século e meio. Falamos dos medos comuns e familiares. Podemos
dizer que o medo é a reação a uma ameaça ao nosso ser, a resposta a um perigo
real ou presumido: do maior perigo de todos, que é o da morte, aos perigos
particulares que ameaçam ou a tranquilidade, ou a incolumidade física, ou o nosso
mundo afetivo. O medo é uma manifestação do nosso instinto fundamental de
conservação. Conforme se trate de perigos objetivos e reais, ou imaginários,
fala-se de medos justificados e injustificados, ou mesmo de neuroses:
claustrofobia, agorafobia, medo de doenças imaginárias, e assim por diante.
A
psicologia e a psicanálise buscam tratar medos e neuroses analisando-os e
trazendo-os do inconsciente ao consciente. O Evangelho não desvia destes meios
humanos, antes, encoraja-os, mas acrescenta algo que nenhuma ciência pode dar.
São Paulo escreve: “Quem nos separará do amor de Cristo? Tribulação,
angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada?... Em tudo
isso, porém, somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou” (Rm
8,35.37). Aqui, a libertação não está em uma ideia ou em uma técnica, mas em
uma pessoa! O “solvente” de todo medo é Cristo, que disse aos seus discípulos:
“Tende coragem! Eu venci o mundo” (Jo 16,33).
Do âmbito
pessoal, o Apóstolo alarga o olhar sobre o grande cenário do espaço e do tempo,
dos pequenos medos individuais passa a aos grandes e universais. Escreve:
“Tenho certeza de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os
principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potências, nem a altura,
nem a profundeza, nem outra criatura qualquer será capaz de nos separar do amor
de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm
8,38-39).
“Nem a
morte, nem a vida!”. Cristo venceu a coisa que mais nos causa medo no mundo, a morte.
Dele, a Carta aos Hebreus, afirma que ele morreu “para destruir, com a sua
morte, aquele que tinha o poder da morte, isto é, o diabo. Assim libertou os
que, por medo da morte, estavam a vida toda sujeitos à escravidão” (Hb
2,14-15).
“Nem a
altura, nem a profundeza”, ou seja: nem o infinitamente grande como o
universo, com as proporções que estão se dilatando sempre mais, nem o
infinitamente pequeno – o átomo – do qual já descobrimos, por nosso risco, a
terrível potência. Hoje, estamos mais do que nunca expostos a este gênero de
medos cósmicos. O homem moderno percebe intensamente a sua vulnerabilidade de
um modo violento e enlouquecedor. O que será do amanhã do nosso planeta se,
apesar dos gritos de alarme do Papa e das pessoas mais responsáveis da
sociedade, continuamos, a rédeas soltas, a consumir e poluir?
Ao término
das suas reflexões filosóficas sobre o perigo da técnica para o homem moderno,
Martin Heidegger, quase desistindo, exclamava: “Só um deus pode nos salvar!”[3].
“Um deus” (letra minúscula!) é o habitual modo mítico para falar de algo que
está acima de nós. Tiramos o artigo indefinido e dizemos “só Deus” (e sabemos
qual Deus!) pode nos salvar!”.
Não é jogar
sobre Deus as nossas responsabilidades, mas crer, que, no fim, “tudo coopera
para o bem daqueles que amam a Deus” [e que Deus ama!] (cf. Rm 8,28). Quando se
deve tratar com Deus, a medida é a eternidade. Podemos ficar desiludidos no
tempo, mas não pela eternidade. Nós, cristãos, temo sum motivo bem mais forte
do que o salmista para repetir, diante das perturbações físicas e morais do
mundo:
Deus é
nosso refúgio e fortaleza,
socorro sempre encontrado nos perigos.
Por isso,
não temeremos, se a terra tremer,
e se as montanhas afundarem no mar (Sl 46).
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Tradução de Fr. Ricardo Farias
Notas:
[1]Cf. Agostinho, Sermo 340,1 (PL
38,1483).
[2] Cf.
Agostinho, Comentário aos Salmos, 126,3.
[3] Cf.
Martin Heidegger, Antwort. Martin Heidegger im Gespräch,
Gesamtausgabe,
vol. 16, Frankfurt 1975.
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