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terça-feira, 12 de março de 2024

Altruísmo ou egoísmo? As verdadeiras razões pelas quais as pessoas doam para caridade

Qual a melhor maneira de encorajar doações? | GETTY IMAGE

Altruísmo ou egoísmo? As verdadeiras razões pelas quais as pessoas doam para caridade.

  • Tim Harford
  • Apresentador do programa 50 Things That Made the Modern Economy

17 dezembro 2019

"Não é da benevolência do açougueiro, cervejeiro ou padeiro que garantimos nosso jantar, mas da preocupação deles com o próprio interesse. Não devemos nos dirigir à humanidade deles, mas ao amor próprio, e jamais falar das nossas necessidades, mas sim das vantagens que eles têm a receber."

Quando o economista Adam Smith estava escrevendo, em 1770, The Wealth of Nations (A Riqueza das Nações), um de seus livros mais influentes, sua caixa de correio provavelmente não recebia cartas com imagens comoventes de crianças famintas, com pedidos de doação.

E quando passeava pela sua cidade natal, Kirkcaldy, em Fife, na costa da Escócia, provavelmente não era abordado por homens e mulheres pedindo para que ele se cadastresse para fazer doações mensais a instituições de caridade.

Hoje em dia não é incomum sermos abordados pessoalmente, por telefone, via televisão, rádio ou correio, para que façamos doações. E os argumentos usados normalmente focam não em vantagens que receberíamos, mas nas nas necessidades dos beneficiários.

Caridade se tornou um grande negócio, embora seja difícil saber o tamanho exato— há poucas estatísticas sobre isso.

Um estudo recente estima que os britânicos doam 54 centavos de libra esterlina de cada £ 100 que possuem (R$ 535,90). Isso é três vezes mais que os alemães, mas apenas um terço do que os americanos doam.

O valor doado pelos britânicos é equivalente ao que eles gastam com cerveja, não muito menos do que gastam com carne e três vezes mais que o gasto na compra de pão. Ou seja, em termos de importância econômica, as instituições de caridade estão em igualdade com o açougueiro, o cervejeiro e o padeiro.

Segundo relatório de 2019 do Charities Aid Foundation, no Brasil, sete em cada 10 pessoas doaram dinheiro nos últimos 12 meses a uma organização social, igreja ou organização religiosa.

O mestre da estratégia de obter doações

A caridade é tão antiga quanto a humanidade. O costume religioso do dízimo - de doar 10% dos salários para causas da igreja - faz o valor de 54 centavos de libra de cada £ 100 parecer irrisório.

Mesmo assim, a verdade é que diferentes impostos e contribuições substituíram o dízimo na vida moderna e muitas organizações de caridade não têm a vantagem de dizer que falam em nome de Deus.

Elas precisam ser profissionais em termos de persuasão. E há um homem considerado o pai desse setor: Charles Summer Ward.

No final do século 19, ele começou a trabalhar na Associação Cristã de Moços (YMCA, na sigla em inglês). Ward era um "homem de tamanho médio, tão sutil nos seus modos" que ninguém suspeitaria do seu poder de levantar fundos, resume o jornal New York Post.

Essa capacidade singular foi reconhecida pela primeira vez em 1905, quando seus empregadores o enviaram a Washington DC para angariar fundos para a construção de um novo prédio.

Ward encontrou um rico doador para fazer uma grande contribuição, sob a condição de que o público complementasse o restante. Ele, então, estabeleceu um prazo fictício para que isso acontecesse e conseguiu os recursos no tempo previsto.

Ward passou a aplicar amplamente seus métodos— estabelecimento de um deadline, prazo delimitado para a campanha, monitoramento e divulgação do progresso dessa campanha, e estratégias de publicidade calculadas militarmente.

Nos tempos atuais, esses métodos soam familiares, mas quando Ward foi a Londres em 1912, eles eram novidade.

O jornal The Times se impressionou com "seu conhecimento da natureza humana e sua perspicaz aplicação de princípios de negócios para assegurar vantagens num momento psicológico".

A Primeira Guerra Mundial trouxe mais inovações: loterias e dias da bandeira, que se assemelham às atuais pulseiras, broches e adesivos que demonstram que você doou algum dinheiro.

Em 1924, Ward tinha uma empresa de levantamento de fundos e divulgava o quanto havia conseguido em doações para todo tipo de setor, de escoteiros a templos maçons.

Para os herdeiros modernos de Charles Summer Ward, o que conta como "aplicação perspicaz de princípios de negócios"?

Podemos obter pistas de executivos de marketing entrevistados pelo jornal britânico The Guardian. Imagens de crianças com fome não alcançam tantas curtidas nas redes sociais, dizem. Em vez disso, invista em construir uma marca, em engajamento e entretenimento.

O que nos motiva doar?

Economistas também têm pesquisado o que motiva alguém fazer uma doação. A teoria da "sinalização de altruísmo" diz que doamos para impressionar outras pessoas.

Isso pode ajudar a explicar a popularidade de pulseiras, broches e adesivos — eles mostram ao mundo não apenas as causas que importam para nós, mas também a nossa generosidade.

Há também uma teoria que diz que doamos para nos sentir bem ou menos culpados.

Mas investigações empíricas dessas ideias produziram resultados decepcionantes. O economista John List e seus colegas mandaram pessoas baterem nas portas de casas. Alguns pediram doação, outros venderam bilhetes de loteria para a mesma causa nobre.

Os bilhetes de loteria renderam mais, o que não surpreendeu. Mas os pesquisadores também descobriram que mulheres jovens e atraentes pedindo doações obtinham resultados tão bons quanto os dos que venderam bilhetes de loteria.

O estudo destaca que esse desempenho se deu principalmente quando homens atenderam as campainhas.

Esse resultado reforça a teoria da "sinalização de altruísmo" — neste caso fica claro quem os homens que doaram queriam impressionar ao concordar com a contribuição.

Outro economista, James Andreoni, estudou a teoria segundo a qual doamos para nos sentir bem. Ele perguntou o que aconteceu com doações particulares após uma instituição começar a ganhar subsídios do governo.

A tese dele era a de que, se os doadores davam dinheiro puramente pelo desejo altruísta de garantir o funcionamento da instituição de caridade, então as doações seriam desviadas para outras causas nobres quando o subsídio entrasse em vigor.

Mas isso não aconteceu, o que sugere, segundo Andreoni, que as doações não eram puramente altruísticas.

Agora, se as instituições estão vendendo a possibilidade de o doador se sentir bem consigo mesmo, isso não daria a elas grandes incentivos para, de fato, fazer algo de útil. Elas só precisariam saber vender uma boa história.

Efetividade

Algumas pessoas, ao decidir sobre fazer ou não uma doação, obviamente levam muito a sério a eficácia e o bem que as instituições de caridade fazem. Há movimentos que advogam pelo "altruísmo efetivo", como o GiveWell (Doe Bem, em português), que estuda a eficácia de instituições de caridade e recomenda as que aparentemente merecem nosso dinheiro.

Os economistas Dean Karlan e Daniel Wood estudaram se a comprovação de eficácia, de fato, aumenta a angariação de fundos.

Eles enviaram a doadores de uma instituição uma correspondência com a história emocionante de uma beneficiária chamada Sebastiana. "Ela não conheceu nada além de pobreza abjeta durante toda a vida", dizia o panfleto.

Outros doadores receberam a mesma história com um parágrafo adicional dizendo que "rigorosos métodos científicos" confirmaram o impacto da instituição.

O resultado? Algumas pessoas que antes contribuíram com grandes doações pareceram impressionadas e doaram quantias ainda maiores. Mas a soma total não foi maior, porque pequenos doadores deram menos dinheiro.

O mero fato de mencionar ciência parece ter atenuado o apelo emocional, afetando o efeito potencial de doar para "se sentir bem consigo mesmo" ou "menos culpado".

Isso pode explicar o motivo do GiveWell não testar grandes instituições de caridade como Oxfam, Save the Children e World Vision.

O autor desse texto escreve para a coluna Economista Disfarçado, do jornal britânico Financial Times. O programa 50 That Made the Modern Economy é transmitido pelo serviço mundial da BBC.

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese

A caridade é o centro da vida cristã!

A catequese nunca acabará (catequizar)

A CARIDADE É O CENTRO DA VIDA CRISTÃ!

Dom Anuar Battisti
Arcebispo Emérito de Maringá (PR) 

Queridos irmãos e irmãs em Cristo, 

Hoje nos reunimos mais uma vez para refletir sobre a quarta catequese quaresmal, o valor espiritual da caridade em nossas vidas. A caridade, também conhecida como amor ao próximo, é uma das virtudes mais nobres e essenciais do cristianismo, e é especialmente significativa durante a Quaresma, quando somos chamados a refletir sobre nosso relacionamento com Deus e com nossos semelhantes. 

A palavra caridade muitas vezes é associada à doação de bens materiais ou à assistência aos necessitados, e certamente essas são expressões importantes de amor ao próximo. No entanto, a verdadeira caridade vai além das ações externas e envolve uma atitude de amor, compaixão e generosidade em todos os aspectos de nossas vidas. 

Nas Escrituras, encontramos inúmeras passagens que nos exortam a praticar a caridade. Em 1 Coríntios 13,1-3, o apóstolo Paulo escreve: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o sino que ressoa ou como o prato que retine. Ainda que eu tenha o dom de profecia e saiba todos os mistérios e todo o conhecimento, e tenha uma fé capaz de mover montanhas, se não tiver amor, nada serei. Ainda que eu dê aos pobres tudo o que possuo e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me valerá”

Essas palavras nos lembram que a caridade não é apenas uma questão de ações externas, mas de atitude de coração. Podemos fazer grandes feitos e sacrifícios, mas se não o fizermos com amor, não terá significado duradouro aos olhos de Deus. 

Além disso, Jesus nos deu um exemplo vivo de caridade durante seu ministério terreno. Em Mateus 25, 35-36, Ele diz: “Porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era estrangeiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me”. Nessas palavras, Jesus nos lembra que quando servimos aos necessitados, estamos servindo a Ele mesmo. 

Durante esta Quaresma, que possamos redescobrir o verdadeiro significado da caridade em nossas vidas. Que possamos cultivar um coração generoso e compassivo, buscando oportunidades para amar e servir aos outros em todas as circunstâncias. Que possamos seguir o exemplo de Jesus, que deu sua vida por nós, demonstrando o amor mais profundo e verdadeiro. 

Uma das maneiras mais simples de fazer a caridade é socorrer os pobres com o que você economizou com o seu jejum nas sextas-feiras da Quaresma. O jejum só tem valor se destinamos o que economizamos em favor dos mais pobres, em matéria, de caridade efetiva. Muitos fazem discursos! E discursos bonitos! Mas a prática é “colocar a mão no bolso” e socorrer os que mais precisam. As pessoas que passam necessidade e fomes não podem esperar! 

Que o Espírito Santo nos guie e fortaleça neste caminho de caridade e amor ao próximo, para que possamos ser verdadeiras testemunhas do amor de Deus neste mundo. 

Que assim seja. Amém.

Fonte: https://www.cnbb.org

Dos Sermões de São Leão Magno, papa

Caridade (Fraternidade sem Fronteiras)

Dos Sermões de São Leão Magno, papa

(Sermo 10 de Quadragesima, 3-5: PL 54,299-301)

(Séc.V)

O bem da caridade

Diz o Senhor no Evangelho de João: Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros (Jo 13,35). E também se lê numa Carta do mesmo Apóstolo: Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece Deus. Quem não ama, não chegou a conhecer Deus, pois Deus é amor (1Jo 4,7-8).

Examine-se a si mesmo cada um dos fiéis, e procure discernir com sinceridade os mais íntimos sentimentos de seu coração. Se encontrar na sua consciência algo que seja fruto da caridade, não duvide que Deus está com ele; mas se esforce por tornar-se cada vez mais digno de tão grande hóspede, perseverando com maior generosidade na prática das obras de misericórdia.

Se Deus é amor, a caridade não deve ter fim, porque a grandeza de Deus não tem limites.

Para praticar o bem da caridade, amados filhos, todo tempo é próprio. Contudo, estes dias da Quaresma, a isso nos exortam de modo especial. Se desejamos celebrar a Páscoa do Senhor com o espírito e o corpo santificados, esforcemo-nos o mais possível por adquirir essa virtude que contém em si todas as outras e cobre a multidão dos pecados.

Ao aproximar-se a celebração deste mistério que ultrapassa todos os outros, o mistério do sangue de Jesus Cristo que apagou as nossas iniquidades, preparemo-nos em primeiro lugar mediante o sacrifício espiritual da misericórdia; o que a bondade divina nos concedeu, demo-lo também nós àqueles que nos ofenderam.

Seja, neste tempo, mais larga a nossa generosidade para com os pobres e todos os que sofrem, a fim de que os nossos jejuns possam saciar a fome dos indigentes e se multipliquem as vozes que dão graças a Deus. Nenhuma devoção dos fiéis agrada tanto a Deus como a dedicação para com os seus pobres, pois nesta solicitude misericordiosa ele reconhece a imagem de sua própria bondade.

Não temamos que essas despesas diminuam nossos recursos, porque a benevolência é uma grande riqueza e não podem faltar meios para a generosidade onde Cristo alimenta e é alimentado. Em tudo isso, intervém aquela mão divina que ao partir o pão o faz crescer, e ao reparti-lo multiplica-o.

Quem dá esmola, faça-o com alegria e confiança, porque tanto maior será o lucro quanto menos guardar para si, conforme diz o santo Apóstolo Paulo: Aquele que dá a semente ao semeador e lhe dará pão como alimento, ele mesmo multiplicará vossas sementes e aumentará os frutos da vossa justiça (2Cor 9,10), em Cristo Jesus, nosso Senhor, que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém.

Fonte: https://liturgiadashoras.online/

A eternidade se esconde dentro de cada aparência (I)

A Maestà de Duccio di Buoninsegna, Museo dell'Opera del Duomo, Siena: o encontro entre Jesus ressuscitado e os apóstolos no Lago Tiberíades | 30Giorni

Revista 30Dias – 06/1999

A eternidade se esconde dentro de cada aparência

O discurso de Dom Luigi Giussani no encontro promovido pelo Pontifício Conselho para os Leigos sobre o tema “Movimentos eclesiais e novas comunidades na pastoral dos bispos” Roma, 18 de junho de 1999.

por Monsenhor Luigi Giussani

) Para quem é cristão e ama a Igreja com todo o seu ser, tal como ela é e como a sua mãe lhe ensinou a amá-la, o escândalo é inevitável quando se nota a diminuição repentina e contínua do índice de pessoas que vão à igreja, como ditam as informações da mídia de massa de hoje.

) Como você pode não ficar tentado a perceber que algo está errado? E isto não pode ser moralmente referido apenas à liberdade do indivíduo; pode-se despertar no coração a impressão de que a infidelidade ao Espírito atinge até algumas expressões de quem ensina o catecismo e na confiança de certos valores e opiniões do clima descristianizado isso pode passar a ser valorizado como um sinal de os tempos, em vez de ser lido no mistério de Cristo. Em suma, este «algo» que falta não pode dizer respeito à natureza do dom de Cristo. Não é um defeito original!

Pelo contrário, é uma redução daquilo que Cristo quis fazer entre os homens, todos enfraquecidos pelo pecado original: foi para isso que Cristo veio.

Portanto, a decisão de seguir a Cristo pode ser tomada por homens que consideram a sua dedicação à Igreja à luz do poder terreno, que mantém a origem e a dinâmica de todos, mesmo dos não-cristãos; e assim a falta do sentido do Mistério distorce o próprio acontecimento de Cristo.
Na verdade, era possível ser fiel à letra da Tradição sem ser educado de uma forma cristã que soubesse quais são os fundamentos de tudo na Igreja. 

) Pensando no início da minha história, gostaria de observar que o estímulo à inovação, porém, veio dentro de mim da fidelidade aos termos da Tradição, ao ensinamento e à prática da Igreja. Entrei no seminário muito jovem, convencido da necessidade da comunhão e da confissão como consequência do batismo. Eu era um jovem seminarista, um menino obediente e exemplar, até que um dia aconteceu algo que mudou radicalmente a minha vida. Foi quando um professor meu me explicou, no seminário, a primeira página do Evangelho de João: «A Palavra de Deus, ou o fim das necessidades do coração humano, isto é, o objetivo último da vida de cada homem desejos - felicidade -, ele se tornou carne." Minha vida foi literalmente atingida por isso: tanto como uma lembrança que persistentemente atingiu meus pensamentos, quanto como estímulo para uma reavaliação da banalidade cotidiana. A partir daí, o momento deixou de ser uma banalidade para mim. Tudo o que era, portanto, tudo o que era belo, verdadeiro, atraente, fascinante, até como possibilidade, encontrou a sua razão de ser naquela mensagem, como uma certeza de presença na qual era a esperança de tudo abraçar. O que me diferenciou daqueles que estavam ao meu redor foi o desejo e a vontade de compreender. Este é o terreno onde nasce a nossa devoção à razão.

Fonte: https://www.30giorni.it/

Cardeal Scherer: Uma aposta perigosa

Jogo de azar (Imagem: Divulgação)

No Congresso Nacional tramita há mais de 30 anos o Projeto de Lei (PL) 442/1991, sobre a legalização dos jogos de azar. Depois de várias tentativas frustradas de aprovação, o PL 442/91 foi novamente retomado com força total e já passou pela Câmara dos Deputados, esperando ser apreciado e votado no Senado.

Cardeal Odilo Pedro Scherer - Arcebispo de São Paulo 

Ao que tudo indica, além da pressão de grupos interessados na legalização dos jogos de azar no Brasil, desta vez a busca de arrecadação para o erário poderia levar vento favorável aos militantes da causa. De fato, um dos argumentos invocados é de que a aprovação do PL 442/91 poderia contribuir para o cumprimento das metas de arrecadação do governo.

Qual seria o problema e que mal haveria na legalização dos jogos de azar? Alguns invocam o respeito à liberdade individual e que o Estado não deveria proibir essa prática, deixando ao cidadão a liberdade de escolha sobre o que deseja fazer ou deixar de fazer. Desconsidera, porém, esse argumento que a prática da jogatina leva, muitas vezes, a uma paixão compulsiva e a uma dependência extremamente maléficas pelo jogo. A ludopatia, ou doença do jogo, é difícil de ser tratada e seu desfecho, depois de ocasionar muito sofrimento também para terceiros, leva à frustração econômica e social e, não raro, ao suicídio.

Argumenta-se, também, que outros países, onde o jogo é legal, tiram vantagens turísticas dessa prática. E logo se pensa em Las Vegas, Monte Carlo e outros paraísos da jogatina. Seria essa uma aposta promissora para o Brasil? Parece pouco provável, pois o fluxo turístico significativo não transita por cassinos e locais de jogos de azar, mas atrai muito mais quem mora perto. Sem esquecer que há muitos outros pontos de interesse para o turismo de massa. Não falta ao Brasil um potencial turístico maravilhoso, sem precisar de jogos de azar.

Por que motivo não legalizar os jogos de azar, uma vez que eles acontecem igualmente, de modo clandestino, sem que haja benefícios tributários? Em resposta, cabe uma nova pergunta: quem assegura que, quando os jogos de azar forem legalizados, as contravenções, os jogos clandestinos e a lavagem de dinheiro serão debelados de maneira eficaz? É sabido que o submundo dos jogos de azar é dominado por fortes grupos ilegais que, certamente, relutarão para renunciar a tão promissores campos de ganho fácil. De maneira semelhante, a legalização do comércio do cigarro não debelou o seu comércio clandestino no Brasil.

Pareceria razoável legalizar os jogos de azar, uma vez que se trata de uma prática irrefreável. Mas, mal comparando, pode-se perguntar se a solução para o desvio de impostos seria a legalização dessa prática. Não se torna boa, mediante a legalização, uma prática ilegal, ilícita e maléfica, que gera graves danos e sofrimentos humanos. Além disso, o custo social, a fiscalização e o controle precisam ser considerados nessa conta. Ao legalizar a jogatina, o Estado deverá controlar seriamente e investir somas enormes em segurança e repressão dos crimes relacionados com os jogos de azar.

Será real a expectativa de que as atividades de jogatina vão trazer novas iniciativas econômicas? Certamente, podem ser gerados empregos e tributos. Mas, em contrapartida, haverá atividades econômicas seriamente ameaçadas e até destruídas pela jogatina. Não faltam histórias de falências econômicas pessoais e empresariais por causa da paixão pelos jogos de azar. Além do mais, o jogo que se pretende legalizar não será uma atividade econômica aberta a novos empreendedores, uma vez que ela já tem donos poderosos.

Não se pode desconsiderar o risco de aumento do crime organizado, da lavagem de dinheiro e dos crimes contra a pessoa. A ludopatia não traz problemas apenas para quem se envolve nessa atividade, mas também para muitas outras pessoas. A legalização da jogatina pode gerar lucros enormes para a própria indústria dos jogos, mas vai socializar imensos custos para a sociedade, que terá de se encarregar dos perdedores, não apenas do seu dinheiro e patrimônio, engolidos pelas tentadoras máquinas de vender ilusões, mas também da saúde mental e da perda do seu lugar social e produtivo. Ninguém tenha ilusões: o Estado e a sociedade serão chamados em causa para pagar a conta de tantos novos desvalidos e perdedores de seus bens e de muito mais.

Honestamente, que vantagem o Brasil e o povo brasileiro teriam com a legalização de mais esta espécie de entorpecente psicológico e moral, capaz de fazer vítimas e causar danos e sofrimentos? Já não bastam os malefícios do consumo desenfreado de entorpecentes, com todo o pacote de males que espalha? A quem interessa a legalização dos jogos de azar e quem espera tirar grandes vantagens com isso? Mesmo com o aceno a algumas possíveis vantagens tributárias, é preciso pesar muito bem as desvantagens que a legalização dessa atividade vai acabar trazendo para o Estado e para a sociedade. Em vez de serem legalizados, os males devem ser prevenidos e debelados.

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 9 de março de 2024

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

segunda-feira, 11 de março de 2024

A eternidade se esconde dentro de cada aparência (II)

O encontro de Jesus ressuscitado com os apóstolos no monte da Galiléia | 30Giorni

Revista 30Dias – 06/1999

A eternidade se esconde dentro de cada aparência

O discurso de Dom Luigi Giussani no encontro promovido pelo Pontifício Conselho para os Leigos sobre o tema “Movimentos eclesiais e novas comunidades na pastoral dos bispos” Roma, 18 de junho de 1999.

por Monsenhor Luigi Giussani

) Eu me interessava pelos alunos, porque as relações que tive, desde os primeiros dias da minha função como professor de seminário, eram todas com alunos. Não foi a escolha de um ambiente específico para dizer certas coisas; Eu me encontrei lá. Assim como um dia encontrei aqueles três meninos no trem, indo para Rimini. Eu não os conhecia e descobri que eram terrivelmente ignorantes e cheios de preconceitos sobre o cristianismo. Esta foi a razão que me levou a pedir aos meus superiores que abandonassem o ensino de teologia no seminário para me dedicar ao trabalho entre as crianças das escolas de Milão.

As coisas que lhes contei não vieram de uma análise do mundo estudantil, mas do que minha mãe e o seminário me contaram. Em suma, tratava-se de falar aos outros com palavras ditadas pela Tradição, mas com consciência visível, até às implicações metodológicas.

O que quer que eu fizesse, em qualquer lugar da Igreja eu teria feito! O que senti e vi foi como uma forma nova, não intuída antes, exceto nos textos dos Padres e dos Papais. Essa constatação veio de uma experiência. Li as mesmas palavras do Evangelho e da Tradição de uma maneira nova.

A diferença entre os fundamentalistas e os tradicionalistas e nós é que, enquanto eles, para salvar a forma antiga, queriam reconduzir os outros à condição anterior (e imitar mecanicamente os seus pais), para nós foi necessário, precisamente, salvar a Tradição, para compreender em que consistia o conteúdo da mesma, explicá-la e dar um exemplo. Eu “entendi”, e outros comigo, que Cristo estava ali, presente.

) Procurei me esclarecer, explicar essa graça de conhecimento e reflexão que tive. Muitas vezes senti-me inaceitável pelas paróquias e pelas associações oficiais, mas para mim a imagem que me veio deu-me uma alegria e uma segurança incomparáveis ​​do facto cristão e fez dele um facto que encheu todo o meu coração na sua abertura à totalidade da realidade. da Igreja no mundo. E esta certeza, esta esperança e esta abertura foram traduzidas nas crianças que começaram a me seguir. Foi o surgimento de uma forma de sentir a presença de Jesus na Igreja como resposta total e abrangente às questões do mundo.

Depois de muitos anos, percebi, precisamente na comparação que sempre procurei e amei com a autoridade da Igreja, que o meu desejo, a paixão do coração que sentia por esta novidade de vida era uma graça particular do Espírito, que se chama carisma. O carisma apareceu-me claramente como o modo concreto pelo qual o Espírito faz nascer no coração do homem uma compreensão e um afeto adequado por Cristo num contexto histórico específico. E quem o recebe «deve» participar no mandato de Cristo: «Ide por todo o mundo!». Do dom dado a uma pessoa começa uma experiência de fé que pode ser útil de alguma forma à Igreja.

Entendo que se sinta que um modo de expressão é mais interessante que outro, mas pode haver uma maneira pela qual o carisma traduza, comunique com a consciência tranquila o que São Paulo afirma sobre a nova criatura; não apenas da nova inteligência ou de um novo coração de caridade, mas da nova criatura na sua totalidade! E isto sublinhando o que é o método cristão. Assim como Deus se fez presente ao homem em Jesus de Nazaré, também a nossa fórmula para sentir a vibração do protagonista desta história é verificar a sua presença integralmente humana e, portanto, a origem de algo que na sua totalidade, tornando-se fonte de um homem diferente, torna-se fonte de uma sociedade diferente. 

) A dinâmica de reconhecimento e verificação da presença de Cristo faz com que qualquer pessoa se torne criativa e protagonista e faz descobrir como a atividade do cristão é por natureza missionária, isto é, participante do próprio método de Cristo que criou a Igreja para se fazer conhecido em todo o mundo. A finalidade da existência cristã é, portanto, viver para a glória humana de Cristo na história. Por isso amamos todas as formas que a Igreja reconhece e estamos prontos dentro dos nossos limites para colaborar com qualquer iniciativa. Tudo o que fazemos não podemos deixar de concebê-lo como uma missão, o destino último de cada ação.

A nossa certeza, fonte de alegria, é a pertença à Igreja, de cuja autoridade, como se traduz a todos os níveis, dependemos, pedindo para sermos reconhecidos, prontos ao sacrifício até ao da vida, mas sobretudo prontos em cada tempo à conversão. sua mente e coração de uma mentalidade mundana. 

7 ) Por isso a nossa concepção moral, reconhecendo a sucumbência do homem ao pecado original, deseja passar pelo aparecimento de tudo em profunda simpatia por Cristo presente para afirmar o seu significado último, para que a relação com qualquer coisa seja vivida como sinal e convite à destino. O cristão é, portanto, um homem que percebe a eternidade escondida em cada aparência.


Fonte: https://www.30giorni.it/

A mulher e a moral cristã

Crédito: Cléofas

A mulher e a moral cristã

 POR PROF. FELIPE AQUINO

“A mulher não nasce, se faz”. Esta frase de Simone Beuavoir, líder feminista radical, se converteu em um verdadeiro estandarte deste movimento. Vários fatos concorreram para isso: a revolução sexual e feminista inspirada em um neo-marxismo, e facilitada pela pílula anticoncepcional, desenvolvida na década de 60.

O movimento feminista radical inspirou-se no marxismo e criou a tal ideologia de “Gênero” (do inglês Gender). Para Karl Marx, toda a história é uma luta de classes, de opressores contra oprimidos, em um batalha que terminará só quando os oprimidos se conscientizarem de sua situação, fizerem uma revolução e impuserem a “ditadura dos oprimidos”. A sociedade será, então, totalmente reconstruída e emergirá a “sociedade sem classes”, livre de conflitos e que assegurará a paz e prosperidade utópicas para todos. Isto foi aplicado na Rússia, China, Camboja, Vietnã, Laos, Cuba, etc. e gerou 100 milhões de mortos, e nada gerou de bom.

Foi Frederick Engels quem colocou as bases para a união do marxismo e do feminismo. O feminismo do “gênero” foi lançado pela primeira vez por Christina Hoff Sommers, em seu livro “Who stole feminism?” (Quem roubou o feminismo?)

A ideologia do gênero reinterpretou a história sob uma perspectiva neomarxista, em que a mulher se identifica com a classe oprimida e o homem com a opressora. O matrimônio monógamo é a síntese e expressão do domínio patriarcal. Toda diferença é entendida como sinônimo de desigualdade, e portanto é preciso acabar com ela. O antagonismo se supera com a luta de classes. Então, as mulheres “devem ir à luta”.

Essa ideologia penetrou nas Nações Unidas (ONU) e então começou sua carreira ascendente. A primeira conquista foi em Pequim, em 1995, na IV Conferência da Mulher, da ONU, com um documento final que estabelecia uma série de pautas para implantar a ideologia. Desde então esta ideologia está se infiltrando cada vez mais nos costumes e na educação (colégios, universidades e meios de comunicação).

A tal ideologia de “gênero” (gender) hoje exige a eliminação de qualquer tipo de diferenças sexuais. Esta perigosa ideologia difunde que a moral cristã é discriminatória a respeito da mulher, e que é um obstáculo para seu crescimento e desenvolvimento; logo, precisa ser destruída. Assim, muitas organizações feministas promovem o aborto, o divórcio, o lesbianismo, a contracepção, o ataque à família, ao casamento, e, sobretudo à Igreja Católica; pois são realidades “opressoras” da mulher.

Mas na verdade foi o oposto; foi o Cristianismo quem libertou a mulher da condição de quase escrava e que se encontrava de modo geral no mundo pagão. O Papa João Paulo II afirmou na Carta Apostólica “Dignitatem Mulieris” (n. 12) que: “Admite-se universalmente — e até por parte de quem se posiciona criticamente diante da mensagem cristã — que Cristo se constituiu, perante os seus contemporâneos, promotor da verdadeira dignidade da mulher e da vocação correspondente a tal dignidade. Às vezes, isso provocava estupor, surpresa, muitas vezes raiando o escândalo: «ficaram admirados por estar ele a conversar com uma mulher» (Jo 4, 27), porque este comportamento se distinguia daquele dos seus contemporâneos. «Ficaram admirados» até os próprios discípulos de Cristo. O fariseu, a cuja casa se dirigiu a mulher pecadora para ungir os pés de Jesus com óleo perfumado, «disse consigo: “Se este homem fosse um profeta, saberia quem é e de que espécie é a mulher que o toca: é uma pecadora”» (Lc 7, 39). Estranheza ainda maior ou até «santa indignação» deviam provocar nos ouvintes satisfeitos de si as palavras de Cristo: «Os publicanos e as meretrizes entram adiante de vós no reino de Deus » (Mt 21, 31)”.

Cristo e o Cristianismo resgataram a mulher. Naquele tempo ela não podia, por exemplo, ser testemunha diante do Sinédrio, o tribunal dos judeus, sua voz não valia. Quantas mulheres se destacaram no Cristianismo já no seu início. Santa Helena, mãe do imperador romano Constantino foi uma gigante; a rainha dos francos Clotilde, esposa de Clovis, rei dos Francos, Joana D'arc, e tantas outras santas, mártires. A Igreja lutou contra o adultério também por parte do homem; o que não acontecia no mundo antigo. A proibição do divórcio deu grande proteção às mulheres. Além disso as mulheres obtiveram mais autonomia graças ao Catolicismo. Na Idade Média católica a rainha era coroada como o rei, geralmente na Catedral de Rheims, na França, ou em outras catedrais. E a sua coroação era tão prestigiada quanto a do Rei; o que mostra que a mulher tinha importância. A última rainha a ser coroada foi Maria de Medicis em 1610, na cidade de Paris. Algumas rainhas medievais tiveram papel importante na história, como Leonor de Aquitânia († 1204) e Branca de Castela († 1252); no caso de ausência, doença ou morte do rei, exerciam o seu poder.

Foi só no século XIX, mediante o “Código de Napoleão”, que aconteceu o processo de despojamento da mulher novamente: deixou de ser reconhecida como senhora dos seus próprios bens, e, em casa mesmo, passou a exercer papel inferior.

A mulher foi por muitos séculos a reserva moral do Ocidente. A ela competia o ensino daquelas coisas que se não se aprende nos primeiros anos de vida, não se aprendem mais. Ela ensinava os filhos a rezar e a distinguir o bem do mal; ensinava o valor da família e das tradições. Mas hoje em dia o feminismo radical, eivado e ateísmo, gerou a banalização do sexo e o hedonismo, fazendo suas vítimas, levando a mulher a perder o sentido do pudor, da maternidade e da piedade.

Isto não significa que, sem descuidar dos afazeres familiares, e na medida de sua vocação, a mulher não possa também dar a contribuição feminina no âmbito a cultura, das artes, da economia, e inclusive a política. Mas tudo isso sem prejuízo do sentido de piedade, do pudor e de maternidade que sempre foram o suporte da formação das pessoas e das sociedades do Ocidente.

Infelizmente hoje cresce esta perigosa ideologia de gênero (gender) que avança de maneira destruidora nas escolas e nas universidades, se propaga pela mídia e começa a moldar a cultura do povo. Para esta ideologia não existe mais sexo, apenas “gênero”; é a pessoa que define o seu sexo e não a natureza. Assim, não tem mais sentido falar em pai, mãe, filho, filha, neto, neta, avô, avó, marido e esposa, homem e mulher. Os sexos não são dois, mas cinco: homem heterossexual, homem homossexual, mulher heterossexual, mulher homossexual e bissexuais. Violentando a natureza, se destrói a mulher, o casamento, a família e a sociedade. É isto que começa agora a ser ensinado a nossas crianças e jovens nas escolas.

É por isso que a ideologia de “gênero” odeia a religião, a natureza, a família e o casamento. Tudo precisa ser destruído, desconstruído, por que tudo isso “sufoca e escraviza a mulher”. É preciso não ignorar a tudo isso.

Prof. Felipe Aquino

Fonte: https://cleofas.com.br/

A terceira pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa (II)

3ª Pregação da Quaresma 2024 - Cardeal Cantalamessa (Vatican News)

A terceira pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa

"Impusemo-nos em não falar, nestas meditações, do que devemos fazer pelos outros, mas somente do que Jesus é e faz por nós: de nos identificarmos com as ovelhas, mão com o pastor. Mas devemos fazer uma pequena exceção nesta ocasião. Apesar de todas as exortações do Evangelho, nem sempre está em nosso poder nos livrarmos do medo e da angústia. Em contrapartida, está em nosso poder libertar alguém (ou ajudá-lo a se libertar) deles."

Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap
“EU SOU O BOM PASTOR”
Terceira Pregação da Quaresma de 2024

Neste ponto, devemos trazer à mente o intuito ao qual nos propusemos com estas meditações: um intuito pessoal, mais que “pastoral”, fazer penetrar o Evangelho em nossa vida, para depois poder anuncia-lo ao mundo com mais credibilidade.

O discurso de Jesus tem dois atores: o pastor e o rebanho, ou seja, no singular, cada ovelha individualmente. Com qual dos dois nos identificaremos? Santo Agostinho, no aniversário da sua ordenação episcopal, dizia ao povo: “Para vós sou bispo, convosco sou cristão!”: “vobis sum episcopus, vobiscum sum christianus[1]. E em outra ocasião: “Em relação a vós, somos como pastores, mas, em relação ao sumo Pastor, somos ovelhas como vós”[2]. Esqueçamos, portanto, o nosso papel – o seu, de pastores, e o meu, de pregador – e sintamo-nos apenas por uma vez e unicamente ovelhas do rebanho. Recordemos a pergunta que importa a Jesus no diálogo de Cesaréia: “Para vós, quem sou?”. Como se dissesse: “Esquecei por um momento quem sou eu para as pessoas e concentrai-vos sobre vós mesmos”.

O grande psicólogo Carl Gustav Jung define o psiquiatra: “A wounded healer”: um curador ferido. O sentido da sua teoria é que é necessário conhecer as próprias feridas psicológicas para tratar daquelas dos outros e que conhecer as feridas dos outros ajuda a tratar as próprias. A intuição do psicanalista vale também para as feridas espirituais. O pastor da Igreja é também ele um wounded healer”, um enfermo que deve ajudar os outros a curar.

Busquemos ver qual é a principal doença da qual devemos nos tratar, para tratar os outros. Qual é a coisa que, do início ao fim da Bíblia, vem inculcada nas ovelhas em relação a Deus-Pastor? É para não ter medo! As palavras se acumulam na memória, neste ponto, começando por aquelas de Jesus: “Não tenhas medo, pequeno rebanho” (Lc 12,32), Por que tendes medo, fracos na fé”, disse aos apóstolos, após ter acalmado a tempestade (Mt 8,26). Recordemos também algumas palavras familiares dos Salmos, não como simples citações bíblicas, mas fazendo-as nossas enquanto as escutamos:

O Senhor é o meu pastor,
nada me falta...

Mesmo se eu tiver de andar por um vale de sombra mortal,
não temerei os males, porque estás comigo
 (Sl 23,1.4).

O Senhor é minha luz e minha salvação: de quem terei medo?
O Senhor é o refúgio da minha vida:
diante de quem tremerei?
 (Sl 27,1).

Falamos, portanto, deste “mal obscuro” do medo, que tem tanto poder para roubar dos homens e mulheres a alegria de viver. O medo é a nossa condição existencial; ele nos acompanha desde a infância até a morte. A criança tem medo de muitas coisas; nós as chamamos de terrores infantis; o adolescente tem medo do sexo oposto e se envolve às vezes em complexos de timidez e de inferioridade; Jesus deu um nome aos nossos principais medos de adultos: medo do amanhã – “que comeremos? – (Mt 6,31), medo do mundo e dos poderosos – “dos que matam o corpo” (Mt 10,28). Sobre cada um destes medos, pronunciou o seu: Nolite timere! Esta não é uma palavra vazia e impotente; é uma palavra eficaz, quase sacramental. Como todas as palavras de Jesus, opera o que significa; não é como o simples: “Tem coragem!” que, os seres humanos, dizemo-nos uns aos outros, seres humanos.

*     *     *

Mas o que é o medo? Deixemos de lado a angústia existencial sobre a qual discutem os filósofos há um século e meio. Falamos dos medos comuns e familiares. Podemos dizer que o medo é a reação a uma ameaça ao nosso ser, a resposta a um perigo real ou presumido: do maior perigo de todos, que é o da morte, aos perigos particulares que ameaçam ou a tranquilidade, ou a incolumidade física, ou o no­sso mundo afetivo. O medo é uma manifestação do nosso instinto fundamental de conservação. Conforme se trate de perigos objetivos e reais, ou imaginários, fala-se de medos justificados e injustificados, ou mesmo de neuroses: claustrofobia, agorafobia, medo de doenças imaginárias, e assim por diante.

A psicologia e a psicanálise buscam tratar medos e neuroses analisando-os e trazendo-os do inconsciente ao consciente. O Evangelho não desvia destes meios humanos, antes, encoraja-os, mas acrescenta algo que nenhuma ciência pode dar. São Paulo escreve: “Quem nos separará do amor de Cristo? Tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada?... Em tudo isso, porém, somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou (Rm 8,35.37). Aqui, a libertação não está em uma ideia ou em uma técnica, mas em uma pessoa! O “solvente” de todo medo é Cristo, que disse aos seus discípulos: “Tende coragem! Eu venci o mundo” (Jo 16,33).

Do âmbito pessoal, o Apóstolo alarga o olhar sobre o grande cenário do espaço e do tempo, dos pequenos medos individuais passa a aos grandes e universais. Escreve:

“Tenho certeza de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potências, nem a altura, nem a profundeza, nem outra criatura qualquer será capaz de nos separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8,38-39).

“Nem a morte, nem a vida!”. Cristo venceu a coisa que mais nos causa medo no mundo, a morte. Dele, a Carta aos Hebreus, afirma que ele morreu “para destruir, com a sua morte, aquele que tinha o poder da morte, isto é, o diabo. Assim libertou os que, por medo da morte, estavam a vida toda sujeitos à escravidão (Hb 2,14-15).

“Nem a altura, nem a profundeza”, ou seja: nem o infinitamente grande como o universo, com as proporções que estão se dilatando sempre mais, nem o infinitamente pequeno – o átomo – do qual já descobrimos, por nosso risco, a terrível potência. Hoje, estamos mais do que nunca expostos a este gênero de medos cósmicos. O homem moderno percebe intensamente a sua vulnerabilidade de um modo violento e enlouquecedor. O que será do amanhã do nosso planeta se, apesar dos gritos de alarme do Papa e das pessoas mais responsáveis da sociedade, continuamos, a rédeas soltas, a consumir e poluir?

Ao término das suas reflexões filosóficas sobre o perigo da técnica para o homem moderno, Martin Heidegger, quase desistindo, exclamava: “Só um deus pode nos salvar!”[3]. “Um deus” (letra minúscula!) é o habitual modo mítico para falar de algo que está acima de nós. Tiramos o artigo indefinido e dizemos “só Deus” (e sabemos qual Deus!) pode nos salvar!”.

Não é jogar sobre Deus as nossas responsabilidades, mas crer, que, no fim, “tudo coopera para o bem daqueles que amam a Deus” [e que Deus ama!] (cf. Rm 8,28). Quando se deve tratar com Deus, a medida é a eternidade. Podemos ficar desiludidos no tempo, mas não pela eternidade. Nós, cristãos, temo sum motivo bem mais forte do que o salmista para repetir, diante das perturbações físicas e morais do mundo:

Deus é nosso refúgio e fortaleza,
socorro sempre encontrado nos perigos.

Por isso, não temeremos, se a terra tremer,
e se as montanhas afundarem no mar
 (Sl 46).

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Tradução de Fr. Ricardo Farias

Notas:

[1]Cf. Agostinho, Sermo 340,1 (PL 38,1483).
[2] Cf. Agostinho, Comentário aos Salmos, 126,3.
[3] Cf. Martin Heidegger, Antwort. Martin Heidegger im Gespräch,

Gesamtausgabe, vol. 16, Frankfurt 1975.

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Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF