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sábado, 23 de março de 2024

O desafio do “nós”

O desafio do "nós" (Opus Dei)

O desafio do “nós”

O Papa convida-nos a sermos construtores de novos vínculos sociais. Para isso é imprescindível, além de pregar o Evangelho, procurar ser pessoalmente um autêntico testemunho de caridade cristã.

25/03/2021

“Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14), disse Jesus em um de seus primeiros discursos, do alto de um monte. Era um desafio ambicioso para os seus ouvintes, que dificilmente teriam se ausentado da Palestina alguma vez e que, em muitos aspectos, não eram melhores do que outros povos dos arredores. Como podiam iluminar o mundo inteiro? O Papa Francisco recordou também certa vez que nós batizados somos chamados a ser no mundo um “evangelho vivo”, a temperar todos os ambientes com “uma vida santa”, com “o testemunho de uma caridade genuína”[1]. A sua proposta ganha em nossos dias uma relevância especial ao considerar que os cristãos, em alguns lugares do mundo, são uma imensa minoria, como acontecia nos primeiros tempos da Igreja: para muitos homens e mulheres do século XXI, a relação com um católico que pratica a sua fé será às vezes a única oportunidade de aproximar-se do Evangelho. Isto implica uma enorme oportunidade. Contamos, além disso, com uma garantia: a luz que aspiramos transmitir a outros não é nossa, mas de Deus.

Essa luz tem certamente a ver com o conteúdo de uma mensagem que gostaríamos de estender no mundo; mas também – e isso não é menos importante – com o meio que a transmite e com o modo de fazê-lo. Os dois aspectos estão intrinsicamente unidos, um influi no outro: nossa condição de discípulos de Jesus manifesta-se ao mesmo tempo no quê e no como. Não ignoramos que o cristianismo não é puro conhecimento, não consiste num saber teórico nem numa soma de leituras: é, sobretudo, um modo de estar no mundo e de relacionar-se com os outros que tem origem no encontro com Jesus Cristo. Implica um empenho prático que, quando surge desse diálogo interior com Deus, acaba por interpelar as pessoas próximas. São Josemaria resumiu-o em um dos pontos iniciais de Caminho: “Oxalá fossem tais o teu porte e a tua conversação que todos pudessem dizer ao ver-te ou ouvir-te falar: Este lê a vida de Jesus Cristo”[2].

Por isso, a formação cristã não visa uma simples erudição doutrinal, e sim levar-nos à identificação com Jesus. Estenderemos assim a boa nova através de nossas palavras e especialmente com a nossa própria vida, como o próprio Jesus fez. Este modo de estar no mundo não se opõe à convivência com os outros, inclusive logicamente, os que podem estar mais longe. A proposta de Jesus é magnânima, e mesmo revolucionária, representa uma das grandes novidades do Evangelho: “Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos maldizem e orai pelos que vos injuriam” (Lc 6, 27-29). É sempre possível olhar para essa mensagem e examinar até que ponto a tornamos nossa.

A diferença é um presente

Todos nós somos diferentes. Distinguimo-nos no aspecto físico, na voz, na forma de pensar, no modo de interpretar a liberdade, nas soluções que propomos para os conflitos da existência, e mesmo no modo de entender a humanidade ou a própria vida. Diante dessa realidade, a nossa atitude não é simplesmente tolerar a diferença, resignar-se com ela, aceitá-la como se fosse um mal inevitável. A diversidade foi querida por Deus e, portanto, é uma riqueza, uma manifestação da sua infinitude. As diferenças formam parte da grandeza da criação, podemos e devemos beneficiar-nos delas. Amando os outros como são, nós os amamos como Deus os ama. Ouvimos dizer tantas vezes que o amor de Deus é incondicional, que talvez o alcance desse adjetivo tenha se diluído um pouco. Trata-se, no entanto, de um desafio decisivo: o amor de Deus supera e ultrapassa todas as nossas condições, por muito razoáveis que nos pareçam. Converte-se por isso também num desafio, numa chamada para que amemos incondicionalmente, sem preconceitos, sem antecedentes, sem exceções, sem nenhum tipo de inércia.

Esse esforço levar-nos-á a evitar o risco de passar sutilmente do “sou diferente” ao “sou melhor”, a afastar a tentação de converter-nos em critério para medir os outros, perigo frequente em qualquer tipo de grupo humano, desde um círculo de amigos até uma nação inteira. Esse “sou o melhor” pode induzir a uma certa superioridade moral que aumenta a distância entre as pessoas até criar, às vezes, fronteiras intransponíveis. São Josemaria, pelo contrário, pensando no espírito do Opus Dei, pregou sempre que “a missão sobrenatural que recebemos não nos leva a distinguir-nos e a separar-nos dos outros; leva-nos a unir-nos a todos, porque somos iguais aos outros cidadãos da nossa pátria”[3]. Além disso, é sempre possível descobrir no próximo qualidades que o tornam melhor que nós. “São Tomás de Aquino, uma das mentes mais prodigiosas da história da humanidade, disse-o claramente: ‘Em qualquer homem existe algum aspecto pelo qual outros podem considerá-lo superior’. Há sempre alguém que de algum modo nos supera e de quem podemos aprender”[4].

Decidir-se a procurar o outro

Os algoritmos das redes sociais – a fórmula que seleciona a informação que recebemos – geram uma tendência a procurar, promover, compartilhar e consumir somente notícias, comentários ou interpretações que reforçam as nossas próprias ideias. Isto pode levar-nos muitas vezes a subestimar ou ignorar opções alternativas ou experiências diferentes da nossa. O Papa Francisco advertiu-nos contra este perigo: “O funcionamento de muitas plataformas acaba frequentemente por favorecer o encontro entre pessoas com as mesmas ideias, dificultando o confronto entre as diferenças. Estes circuitos fechados facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando preconceitos e ódios”[5].

É sempre mais cômodo receber permanentemente confirmações do que pensamos. A inércia afasta-nos das dúvidas em questões opináveis, extingue o bom espírito crítico. As conversas difíceis custam a todos, nem sempre ficamos à vontade quando abandonamos a segurança do conhecido. Por isso, o caminho para encontrar o outro requer uma decisão pessoal, uma atitude proativa. Procurar juntos a verdade através do diálogo, do conhecimento mútuo, “É um caminho perseverante, feito também de silêncios e sofrimentos, capaz de recolher pacientemente a vasta experiência das pessoas e dos povos”[6].

Nesse diálogo, nós, cristãos, sabemos bem que não se trata de mudar a mensagem de Cristo nem de compará-la retoricamente com outras propostas em busca de um ponto médio conciliador. Constituiria uma armadilha colocar o quê e o como frente a frente numa luta teórica. Nós cristãos queremos viver a mensagem de Cristo em sua integridade, adquirir um novo modo de ser: esta é uma premissa substancial da nossa missão. Por isso estamos abertos a conhecer, valorizar e aproveitar a experiência dos outros.

Esta aspiração pode complicar-se quando as pessoas que pensam de modo diferente adotam uma postura hostil. O desenlace da vida terrena de Jesus pode ser um espelho para nós quando as dúvidas nos inquietarem. Descobriremos em sua paixão e morte que essa incompreensão não deveria preocupar-nos muito. A assimetria que o cristão assume ao conviver assim, tendo a cruz como o ponto de partida da sua vida, encarna o discurso do Senhor sobre o amor aos inimigos. Mais ainda, essa desproporção no trato com os outros pode ser uma manifestação específica do cristianismo. Com palavras do próprio Jesus: “Se amais os que vos amam, que recompensa mereceis? Pois o mesmo fazem também os pecadores” (cfr. Lc 6, 32-33). Podemos aplicar isso também aos que nos compreendem – ou que nós compreendemos – menos e às pessoas cujo trato pode ser para nós um pouco mais difícil, pelo menos no princípio.

Jesus acolhe a samaritana

É razoável imaginar uma sintonia crescente entre Jesus e os apóstolos conforme passam os meses juntos: são seus amigos, as pessoas mais próximas, as mais favoráveis à sua missão. Mas vão aparecendo também nos evangelhos outros homens e mulheres alheios aos interesses, à geografia e ao estilo de vida dos doze. A samaritana, por exemplo. O diálogo de Jesus com ela é um dos mais extensos do Evangelho. É uma conversa da qual Jesus se serve para reduzir rapidamente as distâncias que os separam. Enquanto Pedro e os outros vão procurar algo para comer, ele pede água a essa mulher e inicia uma conversa em que faz os seus preconceitos e barreiras desaparecerem rapidamente. As palavras do Mestre sacodem a alma da samaritana e, quando se despedem, ela se sente impulsionada a compartilhar a sua descoberta com todos: “A mulher deixou o seu cântaro, foi à cidade e disse àqueles homens: Vinde e vede um homem que me contou tudo o que tenho feito. Não seria ele, porventura, o Cristo?” (Jo 4, 28-29). Havia-se convertido numa mulher apóstola de quem Deus se serviu para que muitos samaritanos acreditassem em Jesus.

A relação do Senhor com a samaritana contém um ensinamento eloquente: não devemos descartar ninguém. As distâncias entre ambos eram evidentes, mas o desfecho do relato evangélico anima-nos a levar a Deus pessoas que podem parecer-nos pouco inclinadas a isso. Jesus transformou rapidamente em um nós aquele único encontro. Às vezes, as diferenças com as outras pessoas ou os juízos apressados que fazemos delas se manifestam por meio de uma simples conjunção adversativa: “é bom trabalhador, mas...”, “é muito generosa com o seu tempo, mas...”, “é bastante agradável no trato, mas...”. O mas será frequentemente inevitável, às vezes refletirá apenas algumas situações externas. Devemos estar atentos para não o converter numa desculpa para manter distância do outro.

Na hora de eliminar obstáculos, pensar na própria família traz uma chave que talvez tenhamos experimentado pessoalmente. Os laços especialíssimos que nos unem a nossos pais, irmãos ou filhos proporcionam um sentido diferente a esse mas. O que antes representava uma objeção, inclusive uma trincheira, serve-nos para unir, traz-nos uma razão lógica para não descartar ninguém. Podemos ter tal ou qual diferença com uma pessoa, inclusive importante para nós, “mas é meu irmão”, “mas é minha filha”, “mas é meu pai”. A caridade consiste, de alguma forma, em aplicar este critério em outros âmbitos. No caso da samaritana, Jesus transformou o mas em um além disso. Um cristão é uma pessoa que acolhe. E a sua acolhida tem mais sentido com os que vêm de mais longe. “Nós, tentando – dentro de nossa pequenez – imitar o Senhor, também não ‘excluímos ninguém, não apartamos nenhuma alma do nosso amor em Jesus Cristo. Por isso, vocês devem cultivar uma amizade firme, leal e sincera – isto é, cristã – com todos os seus colegas de profissão: mais ainda, com todos os seres humanos, quaisquer que sejam suas circunstâncias pessoais’”[7].

A “revolução copernicana” do amor

Nesse empenho por construir pontes e fortalecer as relações com pessoas diferentes, a alegria do cristão pode representar uma vantagem decisiva. “Ganhar mais afabilidade, alegria, paciência, otimismo, delicadeza e todas as virtudes que tornam a convivência amável é importante para que as pessoas possam se sentir acolhidas e felizes”[8]. Uma pessoa alegre interpela os outros com a sua própria vida, sem necessidade de justificações teóricas prévias. Bento XVI considera que “A força com que a verdade se impõe tem de ser a alegria, que é a sua expressão mais clara. Os cristãos deveriam apostar nela e nela dar-se a conhecer ao mundo”[9]. Por isso, em certo sentido, a alegria é uma responsabilidade neste mundo agitado e mutante. A paciência é igualmente necessária, sobretudo com pessoas que possam manifestar uma atitude um pouco hostil. “Oferecer a nossa amizade de maneira autêntica, pressupõe a capacidade de arriscar, pois cabe a possibilidade de não sermos correspondidos”[10]. E, unido à paciência, é também imprescindível o respeito, que “não é uma resignação educada diante dos defeitos dos outros, com a qual ficamos protegidos atrás do nosso muro de defesa. Uma postura próxima, compreensiva, magnânima, que nos permite olhar de verdade nos olhos de cada pessoa[11]”.

As manifestações anteriores fazem parte da caridade, que é o traço fundamental da nossa relação com os outros. São Paulo já o experimentou: “Mesmo que eu tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência; mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, não sou nada” (1 Co 13, 2). Bento XVI também falou da ”revolução copernicana do amor” que consiste em entrar em uma nova dimensão da caridade: Deus nos ama não porque sejamos bons ou tenhamos algum mérito, mas porque Ele é bom. A imitação de Cristo neste aspecto permitir-nos-á amar não apenas um pequeno círculo de pessoas e sim todos os homens e mulheres que Deus colocou em nosso caminho. Nunca seremos plenamente conscientes do fruto desta atitude: nunca saberemos até que ponto a proximidade, o carinho, a paciência e o respeito ativaram desejos magnânimos nas pessoas que encontramos na vida. Temos, no entanto, a convicção de que, para ser luz do mundo, não há nenhuma estratégia de transmissão possível fora da caridade. São Josemaria sintetizou isso: “De que tu e eu nos portemos como Deus quer – não o esqueças – dependem muitas coisas grandes”[12].

***

Vivemos tempos propícios para a magnanimidade: o Papa Francisco usou a parábola do bom samaritano para recordar-nos que devemos ser “construtores de um novo vínculo social”[13], para percebermos que todos os dias estamos diante da “opção de ser bons samaritanos ou viajantes indiferentes que passam ao largo”[14]. O exemplo daquele único caminhante que se deteve para ver um homem ferido na beira da estrada recorda-nos que “hoje estamos diante da grande oportunidade de expressar o nosso ser irmãos, de ser outros bons samaritanos que tomam sobre si a dor dos fracassos, em vez de fomentar ódios e ressentimentos”[15]. O bom samaritano constitui uma mensagem viva, mostra a identificação entre o quê da sua alma e o como de seus atos.

Algumas vezes os preconceitos e as barreiras poderão parecer insuperáveis. Há, no entanto, um recurso muito eficaz para desfazer rancores ou posturas irredutíveis: a oração. Rezar por uma pessoa com fé e constância une-nos a ela de modo especial e nos aproxima da proposta citada do evangelho: rezar pelos inimigos ajuda a não ter inimigos, muda a nossa visão sobre qualquer pessoa, também aquelas que talvez sejam desagradáveis para nós. São Josemaria pedia diariamente a Deus na Santa Missa pelas pessoas que o tinham prejudicado alguma vez[16]. É uma proposta que parece resumida num ponto de Forja: “Considera o bem que fizeram à tua alma os que, durante a tua vida, te prejudicaram ou procuraram fazê-lo. Outros chamam inimigos a essas pessoas. Tu, procurando imitar os santos, pelo menos nisso, e sendo muito pouca coisa para ter ou ter tido inimigos chama-lhes benfeitores. E acontecerá que, à força de pedir a Deus por eles, simpatizará com eles”[17].

Javier Marrodán


[1] Francisco, Ângelus, 09/02/2014.

[2] São Josemaria, Caminho, n. 2.

[3] São Josemaria, Carta 1, n. 5a.

[4] Isabel Sánchez, Mujeres brújula en un bosque de retos, Planeta, Barcelona, 2020, p. 159.

[5] Francisco, Fratelli tutti, n. 45.

[6] Ibid. , n. 50.

[7] Mons. Fernando Ocáriz, Carta Pastoral, 01/11/2019, n. 7. O texto entre aspas, na citação, pertence à carta 18 de São Josemaria.

[8] Ibid., n. 10.

[9] Bento XVI, Opera Omnia, vol. 11, parte C, 11, 4.

[10] Mons. Fernando Ocáriz, Carta Pastoral, 01/11/2019, n. 12.

[11]“Com um olhar de carinho”, em www.opusdei.org.br

[12] São Josemaria, Caminho, n. 775.

[13] Francisco, Fratelli tutti, n. 66.

[14] Ibid. , n. 69.

[15] . Ibid., n. 77.

[16] Cfr. Javier Echevarría, Carta pastoral, 01/04/1999.

[17] São Josemaria, Forja, n. 802.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br

Mantenha um equilíbrio saudável de espírito e corpo, como Jesus

Shutterstock e KieferPix
Por Aleksander Bańka publicado em 22/03/24
Jesus disse aos seus discípulos que ‘vão embora e descansem um pouco’ quando estivessem cansados ​​do ministério. Extremos são prejudiciais, mas o equilíbrio entre corpo e espírito é difícil.

Se medirmos os erros que cometemos na nossa vida espiritual pelos extremos em que caímos, há dois aos quais devemos prestar atenção: o hedonismo ou o espiritismo excessivo, para seguirmos o verdadeiro exemplo de equilíbrio que Jesus nos deu.

Hedonismo

wavebreakmedia | Obturador

Hedonismo significa focar no prazer e colocá-lo no centro da vida. Não significa necessariamente focar explicitamente no corpo, embora na verdade sejam os prazeres corporais que, em última análise, constituem o seu propósito e significado.

Não é incomum construirmos nosso bem-estar concentrando-nos nos desejos e paixões corporais que nos controlam, que não estão necessariamente relacionados à esfera sexual. Às vezes, são simplesmente desejos de vários bens, confortos sensuais ou experiências emocionais agradáveis.

Tais desejos, em si, não são maus. O problema começa quando eles passam a governar a nossa vida espiritual, dominando-a e subordinando-a. Em tal situação, a espiritualidade é reduzida a uma espécie de cobertura, uma forma de justificativa para tendências que reduzem a felicidade ao bem-estar físico e medem a qualidade do nosso relacionamento com Deus de acordo com a medida do nosso bem-estar. São Paulo chama isso de viver “na carne”.

Espiritismo

Do lado oposto está o erro do espiritismo excessivo. Aqui, por sua vez, as necessidades e desejos do corpo são fortemente marginalizados e até suprimidos em favor da esfera do espírito. Percebemos o corpo humano como um obstáculo ao nosso relacionamento com Deus. No mínimo, consideramos que não participa de forma significativa.

Como resultado, em vez de construirmos uma unidade harmoniosa entre o espírito e o corpo, caímos num forte dualismo que separa ambas as ordens. Identificamos o corpo com o mal e o pecado, e o espírito com o que é bom, puro e abençoado.

Este é, obviamente, um erro que se parece mais com a heresia do gnosticismo do que com uma espiritualidade cristã saudável. Então, como podemos encontrar o equilíbrio certo entre esses dois extremos e configurar adequadamente a nossa vida espiritual?

Cuide de nós mesmos

Estoquista de arte | Obturador

De certa forma, a resposta nos foi dada pelo próprio Jesus. Vendo o cansaço dos seus discípulos ao regressarem de um ministério intenso, «disse-lhes: 'Vinde para um lugar deserto e descansai um pouco'. Porque eram muitos os que iam e vinham, e nem sequer tinham tempo de comer” ( Marcos 6, 31 ).

A palavra grega ἀναπαύσασθε (anapausasthe), que o evangelista São Marcos usa no texto, significa não apenas “descansar”, mas também – e talvez o mais importante – “reclinar-se”, “refrescar-se”.

Assim, significa que o tipo de descanso que nos proporcionará será alimentar e “frescor” espiritual. Jesus está se referindo ao cuidado adequado das necessidades e desejos do corpo de uma forma que não o volte contra o reino espiritual, mas antes o coloque novamente sob sua orientação, com maior energia.

Porque há um princípio sábio em jogo. Cada ser humano é uma unidade de corpo e espírito, e estes dois aspectos condicionam-se mutuamente. Portanto, não podemos excluir o nosso corpo em benefício do nosso espírito, nem dar tanta prioridade às suas necessidades que elas as dominem.

Descansar e cuidar do nosso corpo serve de “refresco” e “alimento”, para que, como pessoa integral, possamos cumprir a nossa missão e vocação à felicidade em sábia harmonia entre espírito e corpo. Em última análise, o conceito cristão de ascetismo consiste precisamente nesta harmonia. E, portanto, parte integrante disso também deve ser a capacidade de descansar.

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Fonte: https://es.aleteia.org/

Semana Santa: um caminho de fé

"O bem que Deus traz através da cruz é a salvação, ela é a expressão maior do amor de Deus" (Vatican Media)

Para este penúltimo domingo do mês, o de Ramos da Paixão do Senhor, dom Adimir Antonio Mazali, bispo diocesano de Erexim, assina artigo e faz uma reflexão sobre o início da "Semana Maior da Igreja". Com o coração aberto, convide ele, "participemos das celebrações em nossas comunidades, fortalecendo nossa fé e a esperança na ressurreição de Jesus, bem como, a certeza de que em Cristo Ressuscitado, somos todos irmãos e irmãs".

Dom Adimir Antonio Mazali*

A Quaresma convidou-nos a voltarmos para o Senhor de todo o coração. Depois de cinco semanas de preparação para a Páscoa, convidados a viver mais intensamente a oração, a penitência e a caridade, com o Domingo de Ramos entramos na Semana Santa, a Semana Maior do Ano Litúrgico, semana em que celebramos o mistério da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.

Prezados irmãos e irmãs. Conforme os Evangelhos Sinóticos - Mateus, Marcos e Lucas -, Jesus iniciou seu ministério na Galileia. Depois de morar “mais ou menos trinta anos” (Lc 3,23) em Nazaré, Jesus foi batizado por João Batista, no Rio Jordão, fez um retiro de quarenta dias e quarenta noites no deserto, se preparando para a missão. No deserto foi tentado pelo demônio, venceu as tentações e depois retornou para Nazaré afim de iniciar sua missão. Ao iniciar a missão, foi expulso de Nazaré (Lc 4,28-29). Com isso, foi morar em Cafarnaum (Lc 4,31; Mt 4,12-13), cidade próxima ao Mar da Galileia, de onde exerceu sua missão com o povo da Galileia, a região norte da Palestina. Lá constituiu o grupo dos Doze (Mc 3,13-19), que passaram a viver e caminhar com Ele por todos os lugares onde ia, curou muitas pessoas doentes, paralíticos, cegos, libertou muitos possessos, ensinou aos discípulos e a todas as pessoas a dinâmica e a lógica do Reino de Deus. Jesus andou por todos os lugares “fazendo o bem” (At 10,38) e “fez bem todas as coisas” (Mc 7,37).

Ao concluir sua missão na Galileia, Jesus “tomou decididamente o caminho para Jerusalém” (Lc 9,51), para anunciar a Boa Nova do Reino de Deus também ao povo que encontrasse pelo caminho e aos habitantes da capital, Jerusalém. Jesus, acompanhado de seus discípulos, foi um missionário itinerante. Entendia que sua tarefa era “fazer a vontade de Deus Pai” (Jo 4,34). Em seu ministério, Jesus foi constantemente perseguido, sobretudo pelas autoridades religiosas. A perseguição foi uma das marcas da trajetória de Jesus.

Caríssimos irmãos e irmãs. A Liturgia da Palavra deste Domingo de Ramos inicia com o Evangelho que descreve a chegada de Jesus em Jerusalém (Mc 11,1-10). Jesus estava acompanhado de seus discípulos, e estes estavam com muito medo, pois ele os havia alertado a respeito da perseguição que iria sofrer. Jesus, “o rei dos judeus”, chegou montado num jumentinho, como havia profetizado Zacarias: “Eis que o teu rei vem a ti, manso e montado num jumento, num jumentinho” (Zc 9,9). Significa que esse rei é pacífico, manso e humilde de coração (Mt 11,28-30). Além disto, o rei dos judeus e Filho de Deus é inocente. As falsas testemunhas não encontraram provas contra ele. Em sua entrada em Jerusalém, “muitos estenderam suas vestes pelo caminho, outros puseram ramos” e cantavam “Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor!” (Mc 11,8). Os pobres de Jerusalém o acolheram com alegria.

O Apóstolo Paulo, na Carta aos Filipenses (2,6-11), revela a espiritualidade que orientou a vida e os passos de Jesus. “Sendo de condição divina, Jesus esvaziou-se a si mesmo, assumiu a condição humana, tornando-se igual aos homens e, como homem, fez-se servo, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte e morte de cruz”. O preço da encarnação foi a cruz. A cruz foi a consequência de sua fidelidade ao plano de Deus Pai.

Estimados irmãos e irmãs. Tudo isso celebramos na Semana Santa. Com o Tríduo Pascal mergulhamos no Mistério Pascal de Cristo, seu esvaziamento total. Na Quinta-feira Santa celebramos a Última Ceia. Com ela Jesus deu as últimas recomendações aos Doze antes de sua morte na cruz. Na instituição da Eucaristia, Jesus se fez alimento para fortalecer os discípulos na fé e na missão. Ao lavar os pés dos Apóstolos, Jesus mostrou a eles que o espírito de serviço deveria ser o modo de vida de todos eles.

A Sexta-feira Santa convida-nos a mergulharmos no mistério da morte de Jesus. Desta surge dois questionamentos: 1º) Por que mataram Jesus? É a pergunta pelas causas da morte de Jesus. Os Evangelhos mostram que a pregação e a prática de Jesus representavam uma ameaça ao poder constituído. As causas da perseguição e morte de Jesus são, no fundo, as denúncias de Jesus contra o poder opressor. A perseguição e morte de Jesus na cruz ocorreu porque ele propunha um projeto de vida e de sociedade alternativo, incluindo a todos: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

2º) Por que Jesus morreu? É a pergunta pelo sentido de sua morte, de seu martírio! Na cruz não morreu qualquer ser humano, mas o próprio Filho de Deus. De acordo com o Novo Testamento, é pela cruz de Jesus que Deus nos salvou do pecado. O bem que Deus traz através da cruz é a salvação, ela é a expressão maior do amor de Deus: “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho” (Jo 3,16); “Deus enviou seu Filho ao mundo, não para julgar o mundo e sim para salvar o mundo” (Jo 3,17).

Por isso, com o coração aberto, participemos das celebrações em nossas comunidades, fortalecendo nossa fé e a esperança na ressurreição de Jesus, bem como, a certeza de que em Cristo Ressuscitado, somos todos irmãos e irmãs. 

* Bispo Diocesano de Erexim – RS

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

5 conselhos para viver bem a Semana Santa

Imagem referencial | Daniel Ibáñez (ACI Prensa)

Como viver bem a Semana Santa? Pe. Gianfranco Castellanos Melzi, Capelão da Universidade Católica San Pablo de Arequipa, no Peru, compartilha estes 5 conselhos para que todo cristão possa acompanhar cada passo da liturgia deste tempo.

1. Diminuir as distrações: O sacerdote explicou que como são dias que constituem um caminho que vai do sofrimento e dor à alegria, é importante “reduzir tudo aquilo que impeça a reflexão e recordar o motivo pelo qual é feriado”.

2. Participar das liturgias: "Não há motivo para não participar de cada rito", assegurou Pe. Castellanos, que argumentou que todos os lugares, todas as igrejas realizam as celebrações da Semana Santa.

3. Confissão: Também recordou que a Igreja Católica recomenda receber a comunhão pelo menos uma vez por ano na Páscoa, então, "seria importante realizar uma boa confissão durante a Semana Santa para poder se aproximar da comunhão".

4. Jejum: Da mesma forma, a Igreja sugere, "com um sentido penitencial", a prática do jejum e da abstinência dois dias por ano: Quarta-feira de Cinzas e Sexta-feira Santa.

5. Alegria Pascal: Finalmente, Pe. Castellanos afirmou que "os cristãos devem se cumprimentar no dia da Páscoa como no Natal".

A saudação pascal é uma tradição que "não deve ser perdida", pois é "a alegria de saber que Jesus venceu a morte ressuscitando, cumprindo com sua promessa de salvação", concluiu o sacerdote.

Fonte: https://www.acidigital.com/

Quarta pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa (II)

4ª Pregação da Quaresma 2024 - Cardeal Cantalamessa (Vatican News)

Quarta pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa

"A esperança necessita da tribulação como a chama necessita do vento para se reforçar. As razões de esperança terrenas devem morrer, uma após a outra, para que venha à tona a verdadeira razão inabalável, que é Deus."

Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap
“EU SOU A RESSURREIÇÃO E A VIDA”
Quarta pregação da Quaresma de 2024

Só agora, após ter assegurado o fato histórico da Ressurreição de Cristo, podemos dedicar a nossa atenção ao significado existencial da palavra de Jesus, que é o que mais nos interessa no contexto destas meditações. Comentando o episódio dos mortos ressuscitados e que apareceram em Jerusalém no momento da morte de Cristo (Mt 27,52-53), São Leão Magno escreve: “Aparecem também agora na Cidade Santa [isto é, na Igreja] os sinais da futura ressurreição e o que deve se cumprir um dia nos corpos, cumpra-se agora nos corações[6]. Há, em outras palavras, dois tipos de ressurreição: há uma ressurreição do corpo que acontecerá no último dia e há uma ressurreição do coração que deve acontecer cada dia!

A melhor maneira para descobrir o que se entende por ressurreição do coração é observar o que a ressurreição física de Jesus produziu espiritualmente na vida dos Apóstolos. Pedro inicia a sua Primeira Carta com estas elevadas palavras:

Bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Em sua grande misericórdia, pela ressurreição de Jesus dentre os mortos, ele nos fez nascer de novo para uma esperança viva, para uma herança que não se desfaz, não se estraga nem se altera, e que é reservada para vós nos céus (1Pd 1,3-4).

A ressurreição do coração, portanto, é o renascimento da esperança. Estranhamente, a palavra “esperança” está ausente na pregação de Jesus. Os Evangelhos referem muitas de suas frases sobre a fé e sobre a caridade, mas nenhuma sobre a esperança, mesmo que toda a sua pregação proclame que existe uma ressurreição dos mortos e uma vida eterna. Ao contrário, após a Páscoa, vemos literalmente explodir a ideia e o sentimento da esperança na pregação dos Apóstolos. Deus mesmo é definido “o Deus da esperança” (Rm 15,13). A explicação da ausência de frases sobre a esperança no Evangelho é simples: Cristo devia antes morrer e ressurgir. Ressurgindo, abriu a fonte da esperança; inaugurou o próprio objeto da esperança, que é uma vida com Deus além da morte.

Tentemos ver o que poderia produzir um renascimento da esperança em nossa vida espiritual. Os Atos dos Apóstolos narram o que acontece, um dia, diante da porta do templo de Jerusalém chamada “Formosa”. Ao lado dela jazia um coxo pedia esmolas. Um dia, passaram por ali Pedro e João, e sabemos o que acontece. O coxo, curado, pôs-se em pé e, finalmente, depois de quem sabe há quantos anos ali jazia abandonado, também ele cruza aquela porta e entra no templo “saltando e louvando a Deus” (At 3,1-9).

Algo de semelhante poderia acontecer também a nós, graças à esperança. Frequentemente nos encontramos também nós, espiritualmente, na posição do coxo no limiar do templo; inertes e tíbios, como que paralisados diante das dificuldades. Mas eis que a esperança divina passa ao nosso lado, trazida pela palavra de Deus, e diz também a nós, como Pedro disse ao coxo e como Jesus disse ao paralítico: “Levanta-te e anda!” (Mc 2,11). E nós nos levantamos e finalmente entramos no coração da Igreja, prontos para assumir, de novo e com alegria, as tarefas e responsabilidades que não são designadas pela Providência e pela obediência. Estes são os milagres diários da esperança. Ela é realmente uma grande taumaturga, operadora de milagres; reergue milhares de coxos e paralíticos espirituais, milhares de vezes.

O que é extraordinário na esperança é que a sua presença muda tudo, mesmo quando exteriormente não muda nada. Tenho um pequeno exemplo em minha vida. Sou uma pessoa que sente muito mais frio do que calor. Agora, na Itália, em março, no início da primavera, a temperatura, como se sabe, é mais ou menos a mesma que no fim de outubro e início de novembro. Mesmo assim, por anos notei que o frio de março me causava menos problema do que o de novembro. Perguntei-me por que, se a temperatura é a mesma, e finalmente descobri a razão. O frio de novembro é um frio sem esperança, porque se está caminhando para o inverno; o frio de março é um frio com esperança, porque se está caminhando para o verão!

  *    *    *

A Carta aos Hebreus compara a esperança a “uma âncora da alma, segura e firme”. Segura e firme porque lançada não à terra, mas no céu, não no tempo, mas na eternidade, “para além da cortina do Santuário”, diz a Carta aos Hebreus (Hb 6,18-19). Este símbolo da esperança tornou-se clássico. Mas também temos uma outra imagem da esperança – em certo sentido, oposta à precedente – isto é, a vela. Se a âncora é o que dá segurança ao barco e o mantém firme em meio às ondas do mar, a vela é o que o faz mover e avançar no mar.

De ambos os modos opera a esperança, tanto em relação ao barco, que é a Igreja, quanto ao barquinho da nossa vida. É realmente como uma vela que capta o vento e, sem barulho, transforma-o em uma força motriz que transporta o barco sobre as águas. Como a vela, nas mãos de um bom marinheiro, tem condições de aproveitar qualquer vento, donde quer que sopre, favorável ou desfavorável, para mover o barco na direção desejada, assim faz a esperança.

Antes de tudo, a esperança nos vem em auxílio ao nosso caminho pessoal de santificação. A esperança se torna, em quem a põe em prática, o próprio princípio do progresso espiritual. Ela está sempre a postos para descobrir novas “ocasiões de bem”, sempre realizáveis. Por isso, não se permite acomodar na tibieza e na acídia. A esperança é o exato oposto do que às vezes se pensa. Não é uma disposição interior bela e poética que faz sonhar e construir mundos imaginários. Ao contrário, é muito concreta e prática. Passa o seu tempo colocando-nos sempre tarefas a cumprir.

Quando, em uma determinada situação, não há absolutamente nada o que fazer – diz o filósofo Kierkegaard, em um dos seus edificantes discursos –[7], aí sim, seriam a paralisia e o desespero. Mas a esperança descobre sempre que há algo que pode ser feito para melhorar a situação: trabalhar mais, ser mais obedientes, mais humildes, mais mortificados. Quando estiver tentado em dizer a si mesmo: “Não há mais nada a fazer” (é ainda Kierkegaard quem nos fala), a esperança vem e lhe diz: “Reze!”. Você responde: “Mas eu rezei!”, e ela: “Reze ainda!”. E, mesmo que a situação se torne de tal forma dura, que não pareça haver realmente nada mais a fazer, a esperança nos indica ainda uma tarefa: resistir até o fim e não perder a paciência. Isto, evidentemente, não é possível pelos nossos esforços, mas só pela graça de Deus, que nos vem em auxílio e não nos deixa sós.

A esperança tem uma relação privilegiada, no Novo Testamento, com a paciência. É o contrário da impaciência, da pressa, do “tudo e imediatamente”. É o antídoto ao desânimo. Mantém vivo o desejo. É também uma grande pedagoga, no sentido de que não indica tudo de uma vez – tudo o que deve ou pode ser feito – mas nos põe diante de uma possibilidade por vez. Dá só “o pão de cada dia”. Distribui o esforço e permite, assim, realizá-lo.

A Escritura continuamente evidencia esta verdade: que a tribulação não tira a esperança, mas, ao contrário, aumenta-a: “A tribulação – escreve o Apóstolo – gera a perseverança, a perseverança leva a uma virtude comprovada, e a virtude comprovada desabrocha em esperança. Ora, a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,3-5).

A esperança necessita da tribulação como a chama necessita do vento para se reforçar. As razões de esperança terrenas devem morrer, uma após a outra, para que venha à tona a verdadeira razão inabalável, que é Deus. Acontece como no lançamento de um navio. É necessário que sejam removidos os andaimes que sustentavam artificialmente o navio, quando estava em construção, e que sejam tirados um após o outro os suportes, para que possa flutuar e avançar livremente sobre a água.

A tribulação nos tira toda “amarra” e nos leva a esperar só em Deus. Conduz àquele estado de perfeição que consiste em esperar quando parece não haver esperança (Rm 4,18), isto é, em continuar a esperar confiando na palavra uma vez pronunciada por Deus, também quando toda razão humana para esperar desapareceu. Tal foi a esperança de Maria sob a cruz e, por isso, a piedade a invoca com o título de Mater Spei, mãe da esperança.

A força transformadora da esperança está maravilhosamente descrita em uma belíssima passagem de Isaías:

Até os adolescentes se afadigam e cansam,
e mesmo os jovens às vezes tropeçam!
Aqueles, porém, que esperam no Senhor, renovam suas forças,
criam asas como de águia, correm e não se afadigam,
caminham e não se cansam 
(Is 40,30-31).

O oráculo é a resposta ao lamento do povo que diz: “Do Senhor está escondido o meu caminho”. Deus não promete tirar as razões do cansaço e da exaustão, mas dá esperança. A situação permanece, de per si, a que era, mas a esperança dá a força para superá-la.

No livro do Apocalipse lemos que: “Quando viu que tinha sido lançado à terra, o dragão começou a perseguir a mulher que tinha dado à luz o menino. Mas a mulher recebeu as duas asas da grande águia e voou para o deserto” (Ap 12,13-14). Se a imagem das asas da águia se inspira, como parece claramente, no texto de Isaías, isso significa que a toda a Igreja foram dadas as grandes asas da esperança, para que com elas possa, toda vez, fugir dos ataques do mal e superar toda dificuldade. Hoje, como outrora.

Concluamos escutando, como se feita agora sobre nós, a invocação que o Apóstolo Paulo faz em favor dos fiéis de Roma ao término da sua Carta endereçada a eles:

O Deus da esperança vos encha de toda alegria e paz em vossa fé. Assim, vossa esperança abundará, pelo poder do Espírito Santo (Rm 15,13).

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Tradução de Fr. Ricardo Farias
[6] Cf. Leão Magno, Sermo 66,3: PL 54,366.
[7]Cf. Søren Kierkegaard, Gli atti dell’amore, Parte II, n. 3.

 Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

sexta-feira, 22 de março de 2024

Quarta pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa (I)

4ª Pregação da Quaresma 2024 - Cardeal Cantalamessa (Vatican News)

Quarta pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa

"A esperança necessita da tribulação como a chama necessita do vento para se reforçar. As razões de esperança terrenas devem morrer, uma após a outra, para que venha à tona a verdadeira razão inabalável, que é Deus."

Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap
“EU SOU A RESSURREIÇÃO E A VIDA”
Quarta pregação da Quaresma de 2024

Em nosso comentário aos solenes “Eu Sou” de Cristo no Evangelho de João, chegamos ao capítulo 11. Ele está todo ocupado pelo episódio da ressurreição de Lázaro. O ensinamento que João quis transmitir à Igreja com a sábia composição do capítulo pode ser resumido em três pontos:

Primeiro ponto: Jesus ressuscita o amigo Lázaro (Jo 11,1-44).

Segundo ponto: A ressurreição de Lázaro provoca a condenação de Jesus à morte (11,47-50):

Os chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram então o sinédrio e discutiam: “Que vamos fazer, visto que este homem faz muitos sinais? Se o deixarmos continuar assim, todos crerão nele, e os romanos virão destruir nosso Lugar Santo e nossa nação”. Um deles, chamado Caifás, sumo sacerdote naquele ano, disse-lhes: “Vós não entendeis nada! Não considerais ser melhor para vós, que um só morra pelo povo e não pereça a não inteira?”.

Terceiro ponto: A morte de Jesus obterá a ressurreição de todos os que creem nele (11,51-53). O Evangelista assim comenta:

Caifás não falou isso por si mesmo, mas, sendo sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus haveria de morrer pela nação, e não só pela nação, mas também para reconduzir à unidade os filhos de Deus dispersos. A partir desse dia decidiram matar Jesus.

Resumindo, a ressurreição de Lázaro provoca a morte de Jesus; a morte de Jesus provoca a ressurreição de quem crer nele!

*    *    *

Agora podemos nos concentrar na palavra de autorrevelação contida no contexto:

Jesus respondeu: “Teu irmão vau ressuscitar”. Marta disse: “Eu sei que ele vai ressuscitar, na ressurreição do último dia”. Então Jesus declarou: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá (11,23-26).

“Eu sou a ressurreição!”. Perguntamo-nos: de qual ressurreição Jesus fala aqui? Marta pensa na ressurreição final. Jesus não nega esta ressurreição “do último dia”, que ele mesmo promete em outra parte (Jo 6,54), mas aqui anuncia una coisa nova: que a ressurreição começa já, desde agora, para quem crê nele. Santo Agostinho comenta: “O Senhor nos indicou uma ressurreição dos mortos que precede a ressurreição final. E não se trata de uma ressurreição como aquela de Lázaro ou do filho da viúva de Naim... que ressuscitaram para morrer uma outra vez, mas no sentido que afirma aqui: “...tem a vida eterna”[1].

Como se vê, a ideia de uma ressurreição “espiritual” e existencial, que acontece já nesta vida graças à fé, não era desconhecida na tradição cristã. A novidade interveio quando se quis fazer dela o único significado da palavra de Jesus. É conhecida a posição de Bultmann, já em grande parte superada, mas que se impunha quando eu estudava teologia. Segundo ele, a ressurreição de que fala Jesus é uma ressurreição existencial, um despertar de consciência, baseado na fé. Estamos na linha do vago “apelo à decisão” e do “decidir-se por Deus”, aos quais ele reduz quase toda a mensagem do Evangelho.

Mas João dedica dois capítulos inteiros do seu Evangelho à ressurreição real e corporal de Jesus, fornecendo algumas das informações mais detalhadas sobre ela. Para ele, portanto, não é apenas “a causa de Jesus”, isto é, a sua mensagem, que ressuscitou da morte – como alguém escreveu[2] – mas a sua pessoa!

A ressurreição atual não substitui aquela final do corpo, mas é a sua garantia. Ela não anula e não torna inútil a ressurreição de Cristo do túmulo, mas antes se funda justamente sobre ela. Jesus pode dizer “Eu sou a ressurreição”, porque ele é o Ressuscitado! A dimensão existencial depende daquela real, não a substitui.

Antes de João, foi o Apóstolo Paulo a afirmar o vínculo indissolúvel entre a fé cristã e a ressurreição real de Cristo. É sempre útil e salutar recordar as suas veementes palavras aos Coríntios:

E se Cristo não ressuscitou, é vã é a nossa pregação, e vã nossa fé. Assim também seríamos considerados falsas testemunhas de Deus, porque testemunhamos contra ele que ressuscitou Cristo, a quem, de fato, não ressuscitou, se é verdade que os mortos não ressuscitam... E se Cristo não ressuscitou, a vossa fé é ilusória e ainda estais nos vossos pecados (1Cor 15,14-17).

Jesus mesmo indicara a sua ressurreição como o sinal por excelência da autenticidade da sua missão. Aos adversários que lhe pediam um sinal, ele dá uma resposta que dificilmente pode ser atribuída a outrem senão ao próprio Jesus:

Uma geração má e adúltera busca um sinal, mas nenhum sinal lhes será dado, a não ser o sinal do profeta Jonas. De fato, como Jonas esteve três dias e três noites no ventre da baleia, assim também o Filho do Homem estará três dias e três noites no seio da terra (Mt 12,39-40).

Os seus opositores sabiam bem que Jonas não permanecera para sempre no ventre da baleia, mas que tinha saído dela após três dias.

Em uma meditação anterior, falei do pré-julgamento presente nos não crentes em relação à fé, que não é menor do que aquele que reprovam nos fiéis. Reprovam nos fiéis, de fato, em não poderem ser objetivos, a partir do momento em que a fé lhes impõe, em princípio, a conclusão a que devem chegar, sem se darem conta de que igualmente acontece com ele. Se se parte do pressuposto de que Deus não existe, que o sobrenatural não existe e que os milagres não são possíveis, também a conclusão a que se chegará é dada em princípio, por isso, literalmente, um pré-juízo.

A ressurreição de Cristo constitui o caso mais exemplar disso. Nenhum evento da antiguidade é sufragado por tantos testemunhos de primeira mão como este. Alguns deles remetem-se a personalidades do calibre intelectual de Saulo de Tarso, que anteriormente combatera ferozmente tal crença. Ele fornece um elenco detalhado de testemunhas, algumas das quais ainda em vida, que poderiam, por isso, facilmente desmenti-lo (1Cor 15,6-9).

Tira-se proveito das discordâncias acerca dos lugares e tempos das aparições, sem se dar conta de que esta coincidência não programada sobre o fato central é uma comprovação da verdade histórica deste, mais do que um desengano. Nenhuma “harmonia preestabelecida” neste caso! Antes de serem postos por escrito, os eventos da vida de Jesus foram por décadas transmitidos por via oral – e variações e adaptações marginais são típicos de toda narrativa que uma comunidade viva e em expansão faz das próprias origens, segundo os lugares e as circunstâncias. É a conclusão a que chegou a mais recente e abalizada pesquisa crítica sobre os Evangelhos[3].

De resto, não há apenas as aparições. São João Crisóstomo tem, a respeito, uma famosa página, à qual toda a investigação crítica moderna não tirou nada da sua força de convicção. Dizia, assim, em uma homilia ao povo:

Donde vem que doze homens, e ignorantes, que viviam às margens dos lagos, dos rios e no deserto, enfrentassem tal empreendimento e aqueles que talvez jamais haviam ido a uma cidade e a uma praça, se entregassem à luta contra toda a terra? Que na prisão de Cristo, depois de tantos milagres, uns fugiram, e outro, o chefe de todos eles, o negou. De onde vem que eles, enquanto Cristo vivia, não enfrentaram o ataque dos judeus, e depois de morto e sepultado, (...) armaram-se contra a terra inteira? Acaso não diriam a si mesmos: O que é isto? Não pôde salvar-se a si mesmo e nos protegerá? Enquanto vivo não socorreu a si próprio, e estender-nos-á a mão depois de morto? Enquanto viveu, não submeteu nem um só povo, e nós, proferindo seu nome, converteremos o orbe todo? Não seria desarrazoado não só agir assim, mas até mesmo pensar? É evidente que, se não o tivessem visto ressuscitado, com uma grande prova de seu poder, não se teriam aventurado a obra tão perigosa[4].

A todas estas provas, o não crente não pode opor senão a convicção de que a ressurreição dos mortos é algo de sobrenatural e o sobrenatural não existe. E o que é isto se não, justamente, um pré-juízo e um “a priori”?

Fides christianorum resurrectio Christi est, escreveu Santo Agostinho: “A fé dos cristãos é a ressurreição de Cristo. Todos acreditam que Jesus esteja morto, também os malvados o creem, mas nem todos creem que tenha ressuscitado e não somos cristãos se não cremos nisso”[5]. Este é o verdadeiro artigo com o qual “a Igreja ou está ou cai”. Nos Atos, os Apóstolos são definidos simplesmente como “testemunhas da sua ressurreição” (At 1,22;2,32). Portanto, valeria a pena refrescar a nossa fé nela, antes de celebrá-la liturgicamente em algumas semanas.

*    *    *

Tradução de Fr. Ricardo Farias

[1] Cf. Agostinho, Tratado sobre o Evangelho de João, 19,9.
[2] Cf. W. Marxsen, La risurrezione di Gesú di Nazareth, Bologna 1970 (ed. ingl. The Resurrection of Jesus of Nazareth, London 1970).
[3] Cf. J.D.G. Dunn, Gli albori del Cristianesimo, 3 voll., Paideia, Brescia 2006, sintetizado em seu livro Cambiare prospettiva su Gesù, Paideia, Brescia 2011.
[4] Cf. João Crisóstomo, Homilias sobre a Primeira Carta aos Coríntios, 4,4 (PG 61,35ss).
[5] Cf. Agostinho, Enarr. in Psaslmos, 120,6.

 Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

A sabedoria dos Salmos

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A SABEDORIA DOS SALMOS

Dom Pedro Cipollini
Bispo de Santo André (SP)

Na Bíblia Sagrada existe o Livro dos Salmos. Impressiona a todos, geração após geração, este livro de oração e poesia ancestral. Nele está o que há de mais profundo das aspirações do coração humano voltado para Deus através da fé, e da constatação dos fatos que se dão na realidade do dia a adia.  

Na língua grega a palavra salmo designa um poema a ser acompanhado por instrumentos musicais. Nos salmos da bíblia está toda doutrina religiosa do Antigo Testamento, neles é possível perceber o amor de Deus pelas criaturas e o louvor verdadeiro que se exprime por um coração transformado segundo a sabedoria divina. 

O próprio Jesus fez suas orações com os salmos, ele mesmo afirmou: “Isto é o que vos dizia quando estava convosco, que deveria se cumprir tudo quanto a meu respeito está escrito em Moisés, nos profetas e nos Salmos’(Lc 24,44). 

Os salmos são perpassados por uma afirmação que muitas vezes pode passar despercebida, trata-se da justiça de Deus na defesa dos pobres, como por exemplo afirma o Salmo 53, conforme se encontra na Edição da Bíblia Sagrada – Edição Pastoral: “Será que os malfeitores não percebem, eles que devoram o meu povo, como se comessem pão, e não invocam a Deus? Eles vão tremer de medo, porque Deus espalha os ossos do agressor, e ficarão envergonhados porque Deus os rejeita”. 

Nos Salmos podemos ver como a história, a profecia, a sabedoria e a lei penetraram a vida do povo, transformando-a em oração viva marcada pelas situações do dia a dia das pessoas e da coletividade. Os Salmos nos ajudam a perceber os dramas da história à luz de Deus, o qual tem a última palavra, quer queira ou não. 

Nos salmos de fato encontramos unidas orações de ação de graças e profecia ao mesmo tempo, como por exemplo no Salmo 9: “Eis que Deus sentou-se para sempre, firmou seu trono para o julgamento. Ele julga o mundo com justiça e governa os povos com retidão…Os povos caíram na cova que fizeram, no laço que ocultaram prenderam o pé. Deus apareceu fazendo justiça, apanhou o injusto em sua manobra. Que os injustos voltem ao túmulo, os povos todos que se esquecem de Deus! Pois o indigente não será esquecido para sempre, e a esperança do pobre jamais se frustrará”. 

Estas são orações que exprimem uma esperança que na verdade se realiza na história através dos séculos. Os reinos e impérios injustos, os sistemas políticos que sustentam a ganância dos poderosos e oprimem os pobres, vão à falência um atrás do outro. O salmista observa que “O injusto se gloria da própria ambição, o avarento despreza e maldiz a Deus! O injusto é soberbo, jamais se interroga. Deus não existe – é tudo o que pensa”( Salmo 10, 3-4). 

Os Salmos nos estimulam a ver a ação de Deus na defesa dos fracos e imitá-lo: “Feliz quem cuida do fraco e do indigente, Deus o salva no dia infeliz. Deus o guarda e mantém vivo, para que seja feliz na terra, e não o entrega á vontade de seus inimigos”(Salmo 41, 2-3). Nos Salmos somos estimulados a colocar em prática a lei de Deus que é a lei do amor fraterno: “A lei de Deus é perfeita, um descanso para a alma. O testemunho de Deus é firme, instrução para o ignorante. Os preceitos de Deus são retos, alegria para o coração. O mandamento de Deus é transparente, é luz para os olhos”(Salmo 19, 8-9). Se observássemos os mandamentos de Deus a Terra viveria em paz. 

E por fim os Salmos, em nossa cultura que adora o dinheiro, a fama e o poder,  nos convidam a confiar em Deus acima de tudo: “Só em Deus a minha alma repousa, porque dele vem a minha salvação. Ele é minha rocha e salvação, a minha fortaleza: jamais serei abalado”(Salmo 62, 2-3). “Porque o Senhor é meu pastor, nada me falta”(Salmo 23,1).

Fonte: https://www.cnbb.org

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF