Quinta Pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa
Que, nesta Páscoa, o Senhor
ressuscitado faça, ele mesmo, ressoar em nosso coração algum daqueles seus
divinos “Eu Sou”, sobre os quais meditamos nesta Quaresma! Principalmente
aquele que proclama a sua vitória pascal: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem
crê em mim, ainda que tenha morrido, ainda que tenha morrido, viverá. E todo
aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá".
O problema
mais delicado, acerca das inspirações, foi sempre o de discernir aquelas que
vêm do Espírito de Deus daquelas que provêm do espírito do mundo, das próprias
paixões, ou do espírito maligno. O tema do discernimento dos espíritos tem
passado nos séculos por uma notável evolução. À origem, era concebido como o
carisma que servia para distinguir – entre as palavras, orações e profecias
pronunciadas na assembleia – quais provinham do Espírito de Deus e quais não.
Em seu exercício comunitário, o carisma da profecia deve ser acompanhado, para
o Apóstolo, por aquele do discernimento dos espíritos: “A outro, (é
dada) a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos” (1Cor
12,10).
O sentido
originário do carisma, entendido por Paulo, parece ser muito preciso e
limitado. Refere-se à recepção da própria profecia, a sua avaliação, da parte
de um ou mais membros da assembleia, também eles dotados de espírito profético.
Também isto, porém, não em base a uma análise racional, mas a uma inspiração do
mesmo Espírito. O sentido de discernir (diakrisis) oscila,
portanto, entre distinguir e interpretar: distinguir se quem
falou foi o Espírito de Deus ou um espírito diverso, interpretar o
que o Espírito quis dizer em uma situação concreta. A este mesmo dom do
discernimento, refere-se a conhecida recomendação do Apóstolo: “Não apagueis
o Espírito, não desprezeis as profecias, mas examinai tudo e guardai o que for
bom. Afastai-vos de toda espécie de mal” (1Ts 5,19-22).
Se devemos
levar em conta a experiência atual dos movimentos pentecostais e carismáticos,
devemos pensar que este carisma consistisse na capacidade da assembleia, ou de
alguns nela, de reagir ativamente a uma palavra profética, a uma citação
bíblica, ou a uma oração, expressando – com a exclamação “confirmo!”, ou com
outros pequenos sinais de cabeça e voz – aprovação pela palavra escutada, ou
mostrando, ao contrário – com o silêncio e passando a outro – um juízo
negativo. Desta forma, a verdadeira e a falsa profecia passam a ser julgadas
“pelos frutos” que produzem ou não, como justamente recomendava Jesus (cf. Mt
7,16). Este significado originário do discernimento dos espíritos – aliás –
poderia de grande atualidade ainda hoje em debates e reuniões, como aqueles que
começamos a experimentar no diálogo sinodal.
Em época
sucessiva, na espiritualidade tanto oriental quanto ocidental, o carisma do
discernimento dos espíritos tem servido sobretudo para discernir as inspirações
do discípulo da parte de um ancião (como no monaquismo) e, mais geralmente,
para discernir as próprias inspirações. A evolução não é
arbitrária; trata-se, de fato, do mesmo dom, mesmo se aplicado a sujeitos e em
contextos diversos: o contexto comunitário no primeiro caso, o pessoal no
segundo.
Há
critérios de discernimento que poderíamos chamar objetivos. No campo doutrinal,
eles se resumem para Paulo no reconhecimento de Cristo como Senhor: “Ninguém,
falando pelo Espírito de Deus, vai dizer: ‘Jesus seja maldito’, como também
ninguém será capaz de dizer: ‘Jesus é Senhor’, a não ser pelo Espírito Santo”
(1Cor 12,3); para João, resumem-se na fé em Cristo e na sua encarnação:
Caríssimos,
não creiais em qualquer espírito, mas examinai os espíritos para verdes se são
de Deus, pois muitos falsos profetas vieram ao mundo. Nisto conheceis o
Espírito de Deus: todo espírito que confessa Jesus Cristo vindo na carne, é de
Deus. E todo espírito que não confessa Jesus, não é de Deus (1Jo
4,1-3).
No campo
moral, um critério fundamental é dado pela coerência do Espírito de Deus
consigo mesmo. Ele não pode pedir algo que seja contrário à vontade divina, tal
como é expressa na Escritura, no ensinamento da Igreja e nos deveres do próprio
estado. Uma inspiração divina jamais pedirá para cumprir atos que a Igreja
considera imorais, por mais que a carne seja capaz de sugerir argumentos
ilusórios contrários nestes casos; por exemplo, que Deus é amor e, por isso,
tudo o que se faz por amor vem de Deus.
Contudo, às
vezes estes critérios objetivos não bastam, porque a escolha não é entre o bem
e o mal, mas é entre um bem e um outro bem, e se trata de ver qual é a coisa
que Deus quer, em uma circunstância precisa. Foi sobretudo para responder a
esta exigência que Santo Inácio de Loyola desenvolveu a sua doutrina sobre o
discernimento.
Sinto quase
vergonha de falar sobre este tema nesta sede..., mas vamos falar pelo menos
alguma coisa. O santo nos convida a observar as intenções – ele as chama de
“espíritos” – que estão por trás de uma escolha e as reações que ela provoca.
Sabe-se que o que vem do Espírito de Deus traz consigo alegria, paz,
tranquilidade, doçura, simplicidade, luz. O que provém do espírito do mal, ao
contrário, traz consigo perturbação, agitação, inquietação, confusão, trevas. O
Apóstolo o põe em evidência contrapondo os frutos da carne (inimizades,
contenda, ciúmes, iras, intrigas, discórdias, invejas) e os frutos do Espírito,
que são, ao contrário, amor, alegria, paz, paciência, amabilidade,
bondade, lealdade, mansidão, domínio próprio (Gl 5,22).
Na prática,
as coisas, é verdade, são mais complexas. Uma inspiração pode vir de Deus e,
apesar disso, causar uma grande perturbação. Mas isto não é devido à inspiração
doce e pacífica, como tudo o que provém de Deus; antes, nasce da resistência à
inspiração ou do fato de ela nos pedir algo que não estamos prontos a lhe dar.
Se a inspiração for acolhida, o coração logo se encontrará em uma profunda paz.
Deus recompensa cada pequena vitória neste campo, fazendo com que a alma sinta
a sua aprovação, que é a alegria mais pura que existe no mundo.
Um campo no
qual é importante praticar o discernimento – além daquele das intenções e das
decisões – é o âmbito dos sentimentos. Nada é mais traiçoeiro do que o amor. A
natureza é habilíssima em deixar passar, como proveniente do espírito, o que ao
invés provém da carne. Neste campo, é mais do que nunca necessário levar em
conta o conselho que o poeta latino Ovídio dava justamente a propósito dos
males do amor: “Principiis obsta. Sero medicina paratur cum mala
per longas convaluere moras: “Opõe-te aos começos. Tarde toma-se o remédio
quando os males, pelos muitos adiamentos, ganharam força”[6].
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O fruto
concreto desta meditação deve ser uma decisão renovada de nos confiarmos em
tudo e por tudo à guia interior do Espírito Santo, como uma espécie de “direção
espiritual”. Devemos todos nos abandonar ao Mestre interior que nos fala sem
tumulto de palavras. Como bons atores, devemos ter o ouvido voltado, nas
grandes e pequenas ocasiões, à voz deste “sugeridor” escondido, para
interpretar fielmente a nossa parte na cena da vida. É o que se entende com a
expressão “docilidade ao Espírito”.
É mais
fácil do que pensamos, porque ele fala dentro de nós, ensina-nos tudo,
instrui-nos sobretudo. Às vezes, basta um simples olhar interior, um movimento
do coração, um momento de recolhimento e oração. João escreve em sua Primeira
Carta:
Quanto a
vós, a unção que dele recebestes permanece convosco, e não tendes necessidade
de que alguém vos ensine. A sua unção vos ensina tudo, e ela é verdadeira e não
mentirosa (1Jo 2,27).
Sobre estas
palavras, Santo Agostinho instaura um debate inusitado e vivaz com o Apóstolo.
Em seu comentário à Primeira Carta de João, escreve:
Pergunto a
João: “Aqueles aos quais dirigias estas palavras já tinham a unção... Por
que então escreveste a eles esta carta? Por que instruí-los?”... Aqui há um
grande mistério sobre o qual é preciso refletir, irmãos. O som das nossas
palavras atinge os ouvidos, mas o verdadeiro mestre está dentro... Nós podemos
exortar com o som da voz, mas, se dentro não está quem ensina, trata-se de um
barulho inútil[7].
Se acolher
as inspirações é importante para todo o cristão, é vital para quem tem funções
de governo na Igreja. Só assim se permite ao Espírito de Cristo guiar a sua
Igreja mediante seus representantes humanos. Em um navio, não é necessário que
todos os passageiros estejam com os ouvidos grudados no rádio de bordo, para
receber sinais sobre a rota, sobre eventuais icebergs e sobre as condições do
tempo, mas é indispensável que os responsáveis de bordo estejam. De uma
“inspiração divina”, acolhida corajosamente pelo Papa São João XXIII, nasceu o
Concílio Vaticano II. Da mesma forma, depois dele, nasceram outros gestos
proféticos, que aqueles que vierem depois de nós perceberão.
Que, nesta
Páscoa, o Senhor ressuscitado faça, ele mesmo, ressoar em nosso coração algum
daqueles seus divinos “Eu Sou”, sobre os quais meditamos nesta Quaresma!
Principalmente aquele que proclama a sua vitória pascal: “Eu sou a
ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, ainda que
tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá (11,23-26).
Santo
Padre, irmãos e irmãs, Feliz Páscoa!
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Tradução Fr. Ricardo Farias, OFMCap
[6] Cf.
Ovídio, Remedia amoris, V,91.
[7] Cf.
Agostinho, Tratado sobre a Primeia Epístola de João, 3,13.
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