Maria, Mãe da
misericórdia
No Magnificat, Nossa Senhora canta a misericórdia, canta o amor alegre
de Deus, que devolve a felicidade a um mundo entristecido. Ela é a primeira
Filha da misericórdia de Deus; e, ao mesmo tempo em que é Filha, é Mãe do Deus
de misericórdia: por isso a chamamos ‘Mater Misericordiae’.
08/05/2017
Quando Gabriel lhe comunica a alegre notícia - o evangelion que,
de um humilde povoado da Galileia mudará a vida dos homens para sempre[1]- “a
Senhora do doce nome, Maria, está recolhida em oração”[2].
O Senhor também escutou Isabel, disse o anjo à Virgem antes de
retirar-se. Santa Maria medita uns instantes nas palavras de Gabriel: abre
caminho em seu interior uma alegria que expande a sua alma e que, então a
recolhe em adoração ao Deus escondido, latens Deitas[3],
que agora abriga em seu seio. Logo, já está saindo para a montanha: sua prima
talvez necessite de ajuda; e, também, ela necessita ir vê-la, porque não cabe
em si de alegria, e não sabe de mais ninguém com quem possa compartilhar esse
feliz segredo, além de José. Santa Maria já é neste momento «imagem da futura
Igreja, que em seu seio leva a esperança do mundo pelos caminhos da história»[4].
DEUS TOMOU A INICIATIVA; ESCOLHEU A TERRA
FÉRTIL DE SUA GENEROSIDADE E DE SEU ABANDONO, E INAUGUROU NELAS A VERDADEIRA
PRIMAVERA DA HISTÓRIA.
Ninguém como uma mãe percebe a alegria de viver que palpita em um
recém-nascido, mas a felicidade da Virgem Maria e de sua prima, à qual as
vizinhas de Ain Karim contemplam, é muito mais intensa: Deus tomou a
iniciativa; escolheu a terra fértil de sua generosidade e de seu abandono, e
inaugurou nelas a verdadeira primavera da história. Enquanto o grande mundo
tenta viver de suas alegrias incertas, neste cantinho da Judéia explode,
silenciosamente, a alegria de Deus. São Lucas nos conta que, quando Maria saúda
Isabel, São João Batista dá um pulo de alegria no seio de sua Mãe. Como o
profeta Davi bailava e saltava ao redor da Arca da Aliança, assim agora aquele
que «entre os nascidos de mulher», é «mais que um profeta» (Mt 11,9.11), saúda
a chegada de Santa Maria, a nova Arca da Aliança. Também nisto o Batista é
precursor do Filho de Davi; como dirá de si mesmo em alguns anos, ele é «o
amigo do esposo, que (…) se alegra com a voz do esposo» (Jo 3,29).
E já agora, ao ouvir a Mãe do Esposo, movido pelo Espírito Santo, é profeta sem
palavras da alegria do Evangelho.
Alegra-se meu espírito em Deus
«O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso Salvador. Ele
desfrutará de ti com alegria, renovará o seu amor, se regozijará em ti com
canto alegre, como nos dias de festa» (Sf 3,17-18). São Lucas tinha bem
presente o profeta Sofonias quando relatava esses momentos da vida da Virgem
Maria. A alegria, íntima e transbordante ao mesmo tempo, que Santa Maria viveu
em seus dias de viagem desde Nazaré, e que contagia instantaneamente Santa
Isabel e São João, encontra agora seu transbordar no Magnificat,
canto de alegria e de misericórdia[5].
«Nossa Mãe meditara longamente sobre as palavras das mulheres e dos homens
santos do Antigo Testamento, que esperavam o Salvador, e sobre os
acontecimentos de que tinham sido protagonistas. Admirara (...) o esbanjamento
da misericórdia de Deus sobre o seu povo, tantas vezes ingrato. Agora, ao
considerar essa ternura do Céu, incessantemente renovada, brota o afeto do seu
Coração imaculado: A minha alma glorifica o Senhor»[6].
«Meu espírito se alegra em Deus meu salvador». Santa Maria é filha de um
povo mediterrâneo, de uma terra onde se canta e se dança: sua emoção íntima,
que vem do fundo da alma, se exterioriza em gestos e exclamações. «Às vezes não
vos bastará falar, tereis necessidade de cantar por amor (...) andareis pelo
mundo, dando luz, como tochas acesas que soltam faíscas de fogo»[7]. A
alegria de Maria não se explica só porque Deus entrou em sua vida, mas porque,
através dEla, o Filho de Deus se fez um de nós, «lembrando-nos de sua
misericórdia (... ) para sempre».
A Igreja se reconhece no Magnificat, «o cântico do Povo de
Deus que caminha na história»[8], e
por isso relembra-o diariamente no Ofício das Vésperas. Com Santa Maria, não
canta uma alegria pequena ou individual: canta a alegria da humanidade inteira;
uma alegria que provém da esperança em «Deus meu Salvador». A Igreja sabe que
Deus é mais forte do que o mal. «A fraqueza de Deus é mais forte do que os
homens» (1 Cor 1,25): a força dos «poderosos» e dos «soberbos de
coração», que fazem a guerra «àqueles que guardam os mandamentos de Deus e
guardam o testemunho de Jesus» (Ap 12,17), e ameaçam esmagar o Amor
de Deus, não é mais que força exterior, ruído, vaidade: «como pó que dispersa o
vento» (Sl 1,4).
«Nossa tristeza infinita só se cura com um infinito amor»[9]: a
misericórdia é o amor alegre de Deus que vem ao encontro de um mundo
entristecido, um «vale de lágrimas»[10].
Deus «surge como o esposo do quarto nupcial; exulta como um herói que percorre
o caminho» (Sl 19): vem com seu carinho, com seu perdão, com sua compreensão...
Vem, sobretudo, com a alegria do Espírito Santo, caridade incriada, que é a
fonte contínua de sua misericórdia, porque só da alegria é possível colher
forças para perdoar sem reservas e sem limites. Esta alegria de Deus é também o
horizonte de sua misericórdia, porque nos criou para Ele; quer salvar-nos da
tristeza do pecado para dar-nos uma felicidade que ninguém nos poderá tirar[11].
Deus confiou esta alegria à sua Igreja, e ninguém pode tirar dela,
«apesar dos pesares»[12].
Por isso canta com Maria: «me proclamarão bem-aventurada todas as gerações».
Todas as gerações dos homens acabam encontrando na Igreja uma Mãe que, através
das crises e tragédias da história, e ainda em seu sofrimento pelos filhos ou
por estranhos que a maltratam ou a desprezam, transborda da alegre salvação de
Deus, e oferece incansavelmente a todos a sua misericórdia. Como Maria em
seu Magnificat, a Igreja suplanta de certo modo a história[13];
Ela guarda a alegria da Ressurreição e vislumbra, entre tanta dor e miséria,
tanta santidade oculta e fecunda: a misericórdia de Deus que «se estende de
geração em geração sobre os que o temem».
Os pobres de Deus
O Magnificat está impregnado da « espiritualidade
dos anawim bíblicos, isto é, daqueles fiéis que se reconhecem
“pobres” não só no desapego de qualquer idolatria da riqueza e do poder, mas
também na humildade profunda do coração, (...) aberto à irrupção da graça
divina que salva»[14].
Santa Maria, e nós com ela, não canta a sua própria grandeza: canta a sua
pequenez – «a humildade de sua escrava» – e as «coisas grandes» que Deus nEla
fez. «Magnificat anima mea Dominum»: todas as gerações e todas as
culturas colocaram e continuam colocando música nestas palavras, que poderiam
ser assim traduzidas: «Quão grande é Deus, que faz bem todas as coisas». O
entusiasmo de Maria em Ain Karim ressoará três décadas depois nos lábios de seu
Filho, no momento em que talvez a alegria de Jesus se expanda mais claramente
nos evangelhos. É bonito observar que as notas de sua alegria são as mesmas que
no Magnificat de sua Mãe: «Naquela mesma hora, Jesus exultou
de alegria no Espírito Santo e disse: Pai, Senhor do céu e da terra, eu te dou
graças porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste
aos pequeninos» (Lc 10,21)[15].
Esta predileção de Deus pelo pequeno guarda um profundo mistério. Deus fica
“desarmado” diante dos simples; sua linguagem, aparentemente ingênua e
inofensiva, «derrubou do trono os poderosos». A misericórdia nos mostra o
verdadeiro rosto de Deus e o «poder do Seu braço», que acaba sempre vencendo.
«Da boca das crianças e dos pequeninos sai um louvor que confunde vossos
adversários e reduz ao silêncio vossos inimigos» (Sl 8,3).
Quando João envia seus discípulos para perguntar a Jesus se ele é «o que
há de vir» (Mt 11,3), o Senhor demonstra, com palavras do profeta
Isaías[16], os
sinais da presença de Deus no meio do seu povo, entre os quais brilha este:
«aos pobres é anunciado o Evangelho» (Lc 7,22). Os pobres, na
Bíblia, são os que esperavam a visita de Deus. Zacarias era um pobre e por isso
soube que «graças à ternura e misericórdia de nosso Deus, o Sol nascente» nos
visitaria «do alto» (Lc 1,78); Simeão era pobre, e por isso seus
olhos viram a salvação[17].
Esta pobreza não é uma pobreza de alma nem estreiteza de olhar; nem
significa ignorância: os magos de Belém, que com certeza pertenciam à elite
cultural de sua terra, eram «pobres em espírito» (Mt 5,3); sua
atitude contrasta com a suficiência dos escribas, a ansiedade de Herodes e a
curiosidade efêmera de Jerusalém onde, passada a agitação pela chegada dos
Magos e sua pergunta acerca do Rei que estava para nascer, ninguém mais voltou
a interessar-se pelo assunto. Estes sábios tinham a simplicidade dos pastores
de Belém; tinham coração para entender, olhos para ver, ouvidos para escutar[18], e
por isso puderam contar-se entre os primeiros a adorá-lo.
«Olhou para a humildade de sua serva (...). Sua misericórdia se estende
de geração em geração sobre aqueles que o temem». O olhar misericordioso de
Deus pousa naqueles que o podem acolher, porque reconhecem com o salmista: «Eu
sou pobre e desgraçado, porém o Senhor cuida de mim» (Sl 40 ,18).
Deus “necessita” da nossa pobreza para entrar na alma: «Jesus não sabe o que
fazer com a astúcia calculista, com a crueldade dos corações frios, com a
formosura vistosa mas oca. Nosso Senhor ama a alegria de um coração jovem, o
passo simples, a voz sem falsete, os olhos limpos, o ouvido atento à sua
palavra de carinho. É assim que reina na alma»[19].
Filha e Mãe da misericórdia
SANTA MARIA É FILHA DE DEUS E MÃE DE
DEUS: GENUISTI QUI TE FECIT; GEROU ÀQUELE QUE A HAVIA CRIADO, E QUE A
HAVIA REDIMIDO
Santa Maria é Filha de Deus e Mãe de Deus: genuisti qui te fecit[20];
gerou Àquele que a havia criado, e que a havia redimido, certamente de um modo
especial que a distingue de todo gênero humano: «Maria recebeu em sua concepção
a benção do Senhor e a misericórdia de Deus, seu salvador»[21].
Ela é por isso a primeira Filha da misericórdia de Deus. E uma vez que é Filha,
é Mãe do Deus de misericórdia: por isso a chamamos: Mater misericordiæ,
Mãe da misericórdia. «Dirijamos a ela a antiga e sempre nova oração da Salve
Rainha, para que nunca se canse de volver a nós seus olhos misericordiosos
e nos faça dignos de contemplar o rosto da misericórdia, seu Filho Jesus»[22].
São Josemaria nos ensinou que «a Jesus sempre se vai e se “volta” por Maria»[23].
Nossa Mãe dissolve a soberba de nossos corações e nos ajuda a tornar-nos
pequenos, para que Deus ponha os olhos em nossa humildade e faça nascer Jesus
em nós. Recorramos a Ela com confiança de filhos, em tantos pequenos detalhes
de carinho; um deles, que São Josemaria aconselhava aos fiéis do Opus Dei,
é beijar o terço antes de rezar o Salmo 2, toda terça-feira.
Todas as gerações a chamaram e a «chamarão bem- aventurada», porque «o
amor traz consigo a alegria, mas é uma alegria com as raízes em forma de cruz»[24]:
com seu Filho, Santa Maria sofreu no Calvário «o dramático encontro entre o
pecado do mundo e a misericórdia divina»[25].
A Pietà, como veio a chamar-se a cena da Virgem com seu Filho
morto entre os braços, expressa intensamente esta participação íntima de nossa
Mãe na misericórdia de Deus. «Pietà» traduz precisamente o hebraico hesed,
um dos conceitos que a Bíblia utiliza para expressar a misericórdia de Deus. Na
Cruz, desprezado pelos homens, Deus protege mais do que nunca «a Israel seu
servo, recordando sua misericórdia». Quando os homens se esquecem das
misericórdias do Senhor, Deus as leva até o extremo: «Mulher, aí tens o teu
filho (...). Aqui tens a tua mãe» (Jo 19,26-27). Estas palavras que
o Senhor dizia da Cruz à sua Mãe e a cada um de nós[26] manifestam
«o mistério de uma missão especial salvífica”. Jesus nos deixava sua mãe como
nossa mãe. Só depois de fazer isto Jesus pôde sentir que “tudo está concluído”
(Jo 19,28)»[27].
Recorramos à sua proteção, para que nos faça misericordiosos como o Pai: «Ela
ampliará nosso coração e nos fará ter entranhas de misericórdia»[28].
Carlos Ayxelá
[1] Cf.
Lc 1,26-38.
[2] São
Josemaria, Santo Rosário, 1º mistério gozoso.
[3] Cfr.
Hino Adoro te devote.
[4] Bento
XVI, Enc. Spe salvi (30-XI-2007), 50.
[5] Cfr. Lc 1,46-55.
[6] São
Josemaria, Amigos de Deus, 241.
[7] São
Josemaria, Carta 11-III-1940, 30.
[8] Francisco,
Homilia, 15-VIII-2013.
[9] Francisco,
Ex. Ap. Evangelii gaudium (24-XI-2013), 265.
[10] Antífona Salve
Regina.
[11] Cfr. Jo 16,
22.
[12] São
Josemaria, É Cristo que passa, 131.
[13] No
original grego, o Magnificat «tem sete verbos no aoristo, que
indicam igual número de ações que o Senhor realiza de modo permanente na
história: "Manifestou o poder do seu braço... dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens...
despediu os ricos... acolheu Israel".» (Bento XVI, Audiência,
15-II-2006).
[14] Bento
XVI, Audiência, 15-II-2016.
[15] Cf. Mt 11,25-27.
[16] Cf. Is 42,7.18;
61,1; Lc 7,19-20; Mt 11,2-3.
[17] Cf. Lc 2,30.
[18] Cfr. Dt 29,3.
[19] São
Josemaria, É Cristo que passa, 181.
[20] Missal
Romano, Comum de Nossa Senhora, Antífona de entrada.
[21] Liturgia
das horas, 8 de dezembro, Officium lectionis, Antífona.
[22] Francisco,
Bula Misericordiæ Vultus (11-IV-2015), 24.
[23] São
Josemaria,Caminho, 495.
[24] São
Josemaria, É Cristo que passa, 43.
[25] Francisco, Evangelii
gaudium, 285.
[26] Cfr.
São João Paulo II, Enc. Ecclesia de Eucharistia (17-IV-2003),
57.
[27] Francisco, Evangelii
gaudium, 285.
[28] São
Josemaria, “El compromiso de la verdad” (9-V-1974), en Josemaría
Escrivá y la Universidad, Pamplona: Eunsa, 1993, 109.