Deus e eu? Liturgia e
sacramentos
A centralidade de Jesus Cristo na nossa vida adquire o seu sentido pleno
e real na celebração litúrgica, quando Deus se deixa ‘tocar’ por nós e nos traz
o hoje da sua salvação.
03/12/2019
Nós, cristãos, cremos e proclamamos Jesus Cristo, o Filho de Deus, que
morreu e ressuscitou por todos e cada um de nós, inserindo-se nos
acontecimentos da linhagem humana para fazer deles uma história de salvação.
Não podemos chegar a Deus, o Pai, se não nos tornarmos irmãos de Cristo pela
água e o Espírito, se não seguirmos – de coração – os seus gestos e palavras.
Sentindo profundamente essa realidade, Paulo VI, na mais longa viagem do
seu Pontificado, pronunciava, diante de uma multidão reunida em Manila,
palavras que comovem porque são um elogio vibrante a Cristo que brotava do seu
coração: “Eu nunca me cansaria de falar sobre Ele. Ele é o pão e a fonte de
água viva, que satisfaz nossa fome e nossa sede. Ele é nosso pastor, nosso
exemplo, nosso conforto, nosso irmão. Por nós falou, operou milagres, instituiu
o novo reino em que os pobres são bem-aventurados, em que a paz é o princípio
da convivência, em que os limpos de coração e aqueles que choram são exaltados
e consolados, em que aqueles que têm fome de justiça serão saciados, em que os
pecadores podem alcançar o perdão, em que todos são irmãos. Jesus Cristo! Lembrem-se
disso: Ele é o objeto perene da nossa pregação. Nosso desejo é que o nome d’Ele
ressoe até nos confins da terra e para todo o sempre”[1].
O fato de que o núcleo do cristianismo seja a pessoa viva de Jesus, o
Crucificado - Ressuscitado, convida-nos a colocar a lógica da nossa identidade
e da nossa vida em conexão com Cristo que morre e ressuscita, e perceber que
toda a nossa existência carrega, dia após dia, uma marca Pascal. Para entender
essa profunda afirmação é necessário prestar uma especial atenção à pessoa de
Cristo em sua relação íntima com o mistério litúrgico.
‘Roçar’ Cristo na liturgia
Em uma ocasião, São Josemaria recordava que “um bispo muito santo, meu
amigo, numa das suas incessantes visitas às catequeses da sua diocese,
perguntava aos meninos por que, para amar Jesus, é preciso recebe-Lo amiúde na
Comunhão. Ninguém acertava na resposta. Por fim, um ciganinho tisnado e muito
sujo respondeu: ‘Porque pra amá-Lo é preciso roçá-Lo’”[2].
Aquele menino destacou, sem querer, uma questão central: o ‘roçar’ Cristo,
ou seja, onde, quando e como o cristão pode ter a sua experiência pessoal do
Ressuscitado. Porque para viver como filhos no Filho, além de saber
conceitualmente quem é Jesus, é necessário ‘roçá-Lo’, ou seja, que
exista a possibilidade de relacionar-se com Ele de uma maneira real. Mas, isso
é viável? Com quanto realismo?
A LITURGIA É O LOCAL PRIVILEGIADO PARA VIVER
" A EXPERIÊNCIA DE CRISTO", PARA CONHECÊ-LO E TRATÁ-LO
Experiência aqui significa conhecer e sentir Cristo
vivo. Pois bem, na Igreja, tratar desta experiência equivale a falar
principalmente da santa liturgia, como local privilegiado para viver a paixão
pelo divino, algo que para os cristãos não é opcional ou irrelevante,
porque ser contemplativos no meio do mundo requer crescer sob o calor da
Palavra de Deus e da liturgia.
Experimentar o ‘hoje’ da salvação
Então, é possível ‘roçar’ Cristo hoje, após a sua ascensão ao
céu? Para responder a essa pergunta, é útil contemplar uma passagem do livro de
Êxodo onde se descreve o desejo de Moisés de ter uma experiência mais íntima de
Deus: “Moisés disse: ‘Mostra-me a tua glória!’ E o Senhor respondeu: ‘Farei
passar diante de ti toda a minha bondade (...) Não poderás ver minha face,
porque ninguém me pode ver e permanecer vivo’”. Sendo Deus infinito, é
impossível para o homem abarcar a sua magnitude. No entanto, o Senhor
acrescenta: “quando a minha glória passar, eu te porei na fenda da rocha e te
cobrirei com a mão enquanto passo. Quando eu retirar a mão, tu me verás pelas
costas” (Ex 33,18-23). Participar nas ações sagradas da Igreja poderia se
comparar com aquela fenda da qual podemos contemplar as espécies sagradas, que
– sem serem as costas de Deus – são o sacramento do seu verdadeiro Corpo e do
seu verdadeiro Sangue.
Outro texto do Evangelho que reúne uma experiência significativa é a
passagem da hemorroíssa. Aquela mulher toca com fé a borda do manto de Cristo e
a força do Senhor a cura da sua prolongada doença. A imagem que o Catecismo da
Igreja Católica escolhe para iniciar a exposição sobre a liturgia e os
sacramentos, surpreendentemente, é a representação mais antiga da passagem da
hemorroíssa nas catacumbas de São Marcelino e São Pedro. Por que escolher esta
imagem? A razão se fundamenta em que os sacramentos da Igreja continuam agora a
obra de salvação que Cristo realizou durante a sua vida terrena. Os sacramentos
são como forças que saem do Corpo de Cristo para nos dar a nova vida de Cristo[3].
Santo Ambrósio explicava-o de maneira muito viva e realista: “ó Cristo, a quem
encontro vivo em teus sacramentos”[4].
Os termos-chave desta frase são ‘vivo’ e ‘sacramentos’. O primeiro se
refere ao aparecimento do Ressuscitado, à sua presença real. O segundo se
refere às celebrações litúrgicas. E Ambrósio une as duas realidades ao verbo
encontrar. Nas celebrações ocorre o encontro entre Cristo e a Igreja. Por isso,
é possível experimentar, aqui e agora, o mesmo poder divino do Filho de Deus
que, transcendendo a distância geográfica e temporal, salva o homem por
inteiro, quando a Igreja celebra a liturgia de cada um dos sacramentos.
NA LITURGIA OCORRE O ENCONTRO ENTRE CRISTO E A
IGREJA, SUA ESPOSA
E nos sacramentos, o que vemos materialmente é água, pão, vinho, óleo,
luz, a cruz... Observamos alguns gestos e ouvimos algumas palavras. São gestos
e palavras que Jesus, ao tomar a nossa natureza – ao encarnar – assumiu para
fazer-se presente por meio deles a fim de continuar curando, perdoando ou
ensinando[5]. É
uma lógica difícil de entender, como foi difícil para Filipe e, por isso, o
Senhor tem que ajudá-lo a entender com uma carinhosa repreensão: “Filipe!
Aquele que me viu, viu também o Pai” (Jo 14,9). E isso não é algo que Cristo
decide, mas algo que Cristo é. Que Ele seja o grande Sacramento, não provém da
sua vontade, mas do seu ser, da sua ontologia. Consequentemente, a Igreja é o
sacramento de Cristo e os sacramentos são os sacramentos da Igreja. Já foi dito
pedagogicamente – com as limitações de um exemplo – que, quando se trata de
alcançar um objeto, a cabeça (Cristo) envia uma ordem ao braço (a
Igreja) para que os dedos (os sacramentos) o peguem. Os
sacramentos são o organismo sacramental da Igreja.
Um contato sacramental
A segunda pergunta questionava que tipo de contato é estabelecido entre
Cristo e nós. Na fé da Igreja, esse contato é chamado de mistérico ou
sacramental, quer dizer, acontece através de um sistema de sinais e símbolos.
A comunicação do mistério de Cristo conosco é realizada através de
mediações simbólicas, que são os ritos do culto cristão: a celebração do
batismo, da Eucaristia, do matrimônio... Tudo tem um significado no universo
simbólico da liturgia, tudo isso manifesta fé. Os sacramentos se chamam sacramentos
da fé.
A liturgia é uma membrana sutil que relaciona o mistério de Deus e o
mistério do homem. Essa membrana é uma membrana de símbolos. O espaço de uma
catedral, ermida ou oratório; a hora do amanhecer ou do pôr do sol, do Natal ou
da Quaresma, os textos da Bíblia e as orações do Missal. Os gestos de adorar de
joelhos ou de receber as cinzas.A comunidade reunida ao redor do altar, as
músicas e aclamações, luzes e cores, aromas e sabores..., todos esses – e ainda
outros – são os símbolos cristãos em cuja celebração reverbera a insondável
transcendência de Deus, o poder do seu amor salvador. Estes símbolos são como
fendas pelas quais o Eterno ilumina a nossa cotidianidade até nos tornarmos
homens e mulheres dignos de “servi-Lo em Sua presença”[6]. Por
meio deles, Deus nos permite pregustar a liturgia da Jerusalém do céu.
Participar definitivamente nela será um dia a consumação definitiva da nossa
vocação batismal.
Essa conaturalidade com os símbolos da liturgia é patrimônio dos
cristãos. Assim como uma mãe não mima o seu filho somente por meio das
palavras, mas também utilizando uma rica variedade de códigos maternos de
comunicação, assim a celebração litúrgica convida o cristão a participar da
ação sagrada com todas as possibilidades da sua sensibilidade, com a alma e com
o corpo, com todos os seus sentidos: aclama a Palavra de Deus, venera o
Santíssimo Sacramento, canta os hinos com que os Anjos louvam a Deus, oferece
incenso, prova o pão e vinho consagrados, conserva silêncio... Dessa maneira,
os sinais do mistério de Cristo nos conduzem pela mão ao próprio mistério de
Cristo e então, todo o peso da verdade que esse mistério tem é percebido por
nós na atmosfera envolvente do ritos que o celebram.
E, além da conaturalidade, o apreço. Gostamos desses humildes véus por
trás dos quais o Ressuscitado manifesta e oculta a sua presença. Nesse sentido,
Santo Agostinho confessava: “ainda não tratava meu Deus, Jesus, de humilde para
humilde, nem sabia que lição ministrava sua fraqueza”[7].
O realismo sacramental
No começo, também nos perguntávamos: com quanto realismo? Temos que
mencionar também o realismo sacramental, se quisermos responder à pergunta
sobre até que ponto esse ‘roçar’, esse contato com Cristo é verdadeiro.
O realismo sacramental significa que, ao participar na liturgia, recebemos a
própria realidade divina através dos sinais da Igreja. Os sinais e os símbolos
litúrgicos estão repletos dessa realidade, especialmente na Eucaristia. Dizer
que o contato entre Cristo e a Igreja é sacramental em nada diminui a pura
realidade desse contato.
O CONTATO É SACRAMENTAL; ISTO É, ACONTECE
ATRAVÉS DE UM SISTEMA DE SINAIS E SÍMBOLOS
O substantivo ‘contato’ é um termo que encontramos nas antigas
fontes litúrgicas: “ó Deus, que na participação do teu sacramento chegas até
nós (contingis)”, isto é, entra em contato conosco, se aproxima até nos
atingir[8].
Deus contata conosco e nós contatamos com Deus por meio da participação no
mistério celebrado. Contatos físicos com o Senhor tiveram são Tomé, a
hemorroíssa ou os leprosos. Em nós, esses contatos são agora sacramentais. Não
se trata de imaginar o passado como algo que agora está presente apenas para a
fé dos que acreditam. A liturgia não diz: isto simboliza, imagine...
mas afirma: isto é. Não é uma mera afirmação, é uma notícia! É um acontecimento
real.
Os Padres da Igreja enfatizaram esse realismo do mistério sacramental e
o demonstraram através de expressões, como no caso do Papa São Leão Magno, que,
comentando os efeitos do batismo sobre quem o recebe, afirma: “o corpo do
batizado é a carne do Crucificado”[9].
Fruto do profundo realismo sacramental, que palpita nesta expressão, é a
abertura imediata de um grande horizonte para compreender quem é um cristão:
uma identidade que abraça dimensões que vão do valor sagrado do seu corpo até a
esperança da glória com a qual será revestido. Da condição de uma pessoa que
tem o mesmo corpo de Cristo, até a santidade dos relacionamentos esponsais (cf.
Ef 3,6). São valores surpreendentes que, quando brotam da fonte inesgotável que
a Igreja oferece em seus sacramentos, exalta ao extremo a condição humana do
batizado.
Por outro lado, na tensão de narrar o mistério, as linguagens não se
excluem, mas se complementam mutuamente, e por isso a liturgia sabe intuir
quando é o momento da palavra, quando é o momento da música ou do silêncio,
quando é o momento do gesto ou da adoração. Mas sempre é hora da arte, pois,
sendo Deus a eterna Beleza, o seu acontecer sacramental – a liturgia –
constitui-se a arte das artes. Nela, verdade e bem são mostrados revestidos de
beleza e, por isso, o decoro e o bom gosto estão sempre presentes, por serem
elementos estruturantes da ação sagrada. A experiência de Deus passa por
essa via pulchritudinis [caminho da beleza], que é a
celebração, cada celebração é um acontecimento de alto nível estético.
Para que os ritos tragam significado de maneira notória, são necessárias
celebrações que irradiem verdade e simplicidade, autenticidade e dignidade. A
celebração ocorre na solenidade do simples. Nada do que intervém nela pode ser
prosaico, nem suntuoso, mas tudo deve ser límpido, nobre e de bom gosto. São as
qualidades do decoro com que a Esposa dedica a sua humilde homenagem ao Esposo,
seu apreço ao que celebra: o amor salvífico transbordante da Santíssima
Trindade.
Felix Maria Arocena
Tradução: Mônica Diez
[1] São
Paulo VI, Homilia durante uma viagem pastoral a Manila, Filipinas 29-XI-1970.
[2] São
Josemaria, Anotações de uma meditação, 12-IV-1937, em “Crescer para dentro”, p.
50. Este bispo era dom Manuel González, que ocupou a sede de Málaga, na Espanha
e foi canonizado em 2016.
[3] Catecismo
da Igreja Católica, n. 1066.
[4] Santo
Ambrósio, Apologia prophetæ David 1, 2.
[5] São
Josemaria lembrava o ensinamento dos Padres quando diziam que os sacramentos
são “pegadas da encarnação do Verbo” (cfr. São Josemaria Escrivá. Amar
o mundo apaixonadamente).
[6] Missal
Romano, Oração Eucarística II.
[7] Santo
Agostinho, Confissões, 7, 18.
[8] Cfr. Sacramentário Veronense 1256. O verbo latino contingo é um composto de tango (cum-tango), que significa tocar. Contingire remete a ‘contatar’.
[9] São Leão Magno 70, 4: “corpus regenerati fit caro Crucifixi”.
Fonte: https://opusdei.org/pt-br