"A experiência do deserto" | Opus Dei
Como se fosse um filme:
"A experiência do deserto"
A vida de Jesus não foi isenta de dificuldades. Antes de iniciar seu
ministério público, ele passou quarenta dias de jejum e penitência no deserto,
onde sofreu as tentações do demônio. Essa experiência pode nos mostrar uma
maneira de ver as dificuldades como oportunidades de amadurecer nossa vocação
cristã.
13/02/2024
O enredo de um bom filme geralmente tem momentos de conflito. Se o
protagonista não tivesse que enfrentar problemas, talvez fosse uma história
monótona e previsível. Mas são essas reviravoltas que tornam um filme
emocionante. O espectador observa como o ator passa por vários contratempos até
conseguir o que tanto queria. E, no final desse processo, que teve seus altos e
baixos, muitas vezes ele se sentirá transformado: o personagem que começou o
filme será diferente daquele do final.
Na história de qualquer pessoa, há também situações de conflito. Não há
biografias sem momentos de dor, dúvida ou cansaço. Assim, junto com os bons
momentos, essas circunstâncias de conflito também nos permitem crescer nos
ideais que inspiram nossa vida. O próprio Jesus quis viver uma experiência
semelhante: passou quarenta dias de fome e sede no deserto, onde sofreu as
tentações do demônio (cf Mt 4,1-11).
Escolher quem queremos ser
Depois que Cristo recebeu uma manifestação do Paráclito e do amor de seu
Pai, nas águas do Jordão, Ele é conduzido por esse mesmo Espírito ao deserto
“para ser tentado pelo diabo” (Mt 4,1). Em vez de abraçar o sucesso fácil
diante das multidões no Jordão, ele preferiu preparar sua vida pública com o
sabor agridoce do abandono e da provação. “Também Jesus foi tentado pelo diabo,
e acompanha-nos, a cada um de nós, nas nossas tentações. O deserto simboliza a
luta contra as seduções do mal, a fim de aprender a escolher a verdadeira
liberdade. De fato, Jesus vive a experiência do deserto pouco antes de começar
a sua missão pública. É precisamente através dessa luta espiritual que ele
afirma decididamente o tipo de Messias que pretende ser”[1].
Também nós, por meio das tentações que podem surgir na vida cotidiana,
podemos afirmar com decisão quem queremos ser. Se Deus as permite, é justamente
para que possamos descobrir nossa verdade e purificar nosso amor, de modo que
nossos desejos tendam para Ele. “A guerra do cristão é incessante, porque na
vida interior se verifica um perpétuo começar e recomeçar, que nos impede de
orgulhosamente nos imaginarmos perfeitos. É inevitável que haja muitas
dificuldades no nosso caminho; se não encontrássemos obstáculos, não seríamos
criaturas de carne e osso. Sempre teremos paixões que nos puxem para baixo, e
sempre precisaremos defender-nos contra esses delírios mais ou menos veementes”[2].
O Senhor não nos deixa sozinhos. Ao mesmo tempo em que sofremos
tentações, contamos com a mão estendida de Jesus para nos manter firmes. Por
meio dessas provações, podemos entender melhor quem queremos ser e escolher
livremente os ideais que nos movem. Melhor do que qualquer outra pessoa, Cristo
nos entende quando sentimos esse dilema entre quem queremos ser e o bem
aparente que a provação coloca ao nosso alcance. A maneira como Ele viveu a
experiência do deserto pode nos ajudar a ver as tentações de forma mais
realista: não é cedendo a elas ou conversando com elas que encontraremos a paz,
mas abraçando resolutamente o amor que inspira nossa vida.
Escutar a fome
Como um verdadeiro homem, após quarenta dias de jejum rigoroso e oração
profunda, Jesus sente fome. Não se trata de um apetite isolado, nem de uma mera
necessidade humana: é uma fome de sobrevivência. O Senhor está no limite das
suas forças humanas. Podemos imaginá-lo exausto, com o olhar percorrendo a
paisagem árida e infinita, até se fixar em algumas pequenas rochas distantes. E
a imaginação, que sempre transforma a necessidade em sonhos, talvez o levaria
pelos caminhos de suas boas lembranças, quando comia os pratos simples, mas
saborosos, que sua mãe lhe preparava com tanto carinho. Foi exatamente nessa
situação que o tentador entrou em cena: “Se és Filho de Deus, manda que estas
pedras se transformem em pães” (Mt 4,3). Adão e Eva sucumbiram a
outra insinuação do demônio quando se deixaram seduzir pela beleza do fruto da
árvore, em vez da comunhão com Deus (cf Gn 3,1-6). O povo de
Israel também entrou em desespero no deserto por causa da falta de comida, pois
se lembrava com nostalgia dos vegetais que comia como escravo no Egito
(cf Num 11,5). É uma prova que, no final, nos leva a meditar
sobre a hierarquia do nosso coração e a nos perguntar o que realmente conta na
vida. “Superar as tentações de submeter Deus a nós mesmos e aos nossos
interesses, ou de o pôr num canto, e converter-se à justa ordem de prioridades,
reservar a Deus o primeiro lugar, é um caminho que cada cristão deve percorrer
sempre de novo”[3].
Quando a necessidade parece se rebelar dentro d’Ele e reivindicar os
seus direitos, Jesus mostra a verdadeira fonte da sua paz, aquilo que Ele sabe
que o faz feliz: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da
boca de Deus” (Mt 4:4). Cristo não nega que está com fome. Mas Ele não quer
saciá-la com qualquer alimento, mas com aquele que o satisfaz profundamente:
ser fiel ao chamado para redimir todos os homens. “Meu alimento é fazer a
vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra” (Jo 4,34), Ele dirá aos
discípulos em outra ocasião.
O Senhor revela que, quando a tentação aparece, o primeiro passo é
reconhecê-la como tal. Agir como se nada estivesse errado, fingir que não se
está realmente com fome, pode provocar uma tensão latente que, pouco a pouco,
nos faz desejar e ansiar por aquilo que, a princípio, foi rejeitado. É por isso
que Deus nos convida a ouvir a fome em nosso coração, para que não a
preenchamos com as primeiras pedras que encontrarmos. Por meio da experiência
da nossa necessidade, podemos entender uma mensagem. Percebemos que o Senhor
não quer que saciemos essa fome com o fruto de uma árvore ou com os vegetais do
Egito, pois eles dificilmente poderão anestesiá-la. Sua proposta diante dessa
necessidade é que preenchamos nosso coração com o que é realmente importante em
nossa vida: o amor a Deus e o amor ao próximo.
Abraçar a vontade de Deus
O demônio não se dá por vencido. Jesus Cristo permite que ele o tente
ainda mais fortemente, para que experimentemos mais vividamente sua
identificação com a vontade de seu Pai e a sua profunda proximidade com o homem
pecador. O tentador leva Jesus ao topo do templo. O vento batia em seu rosto nu
e fatigado; seus pés mal suportavam o peso de seu corpo cambaleante de cansaço.
Seus olhos, que em poucos meses chorariam amargamente pelos habitantes da
Cidade Santa, penetram com amor em cada telhado e em cada beco. Não seria esse
um bom momento para revelar sua verdadeira identidade com toda a clareza? A voz
estridente do demônio de repente rompe o denso silêncio da altura. “Se és Filho
de Deus, lança-te daqui abaixo! Porque está escrito: 'Deus dará ordens aos seus
anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em
alguma pedra'” (Mt 4,5).
Diante de uma insinuação tortuosa da serpente, Adão e Eva passaram a
desconfiar de Deus. Por que Ele não quer que comamos dessa árvore? Durante os
quarenta anos no deserto, os israelitas também desconfiaram da liberdade que o
Senhor lhes havia oferecido. Será que o nosso passado como escravos não era
melhor do que essa liberdade cheia de sofrimento? Em toda tentação há a
possibilidade da ausência, impotência ou distanciamento de Deus. Talvez Ele
seja lembrado como um companheiro do passado, outrora próximo, mas não mais
real. Às vezes é fácil reconhecer o Senhor quando as coisas estão indo bem, e
aproveitamos as maravilhas do Éden ou contemplamos os prodígios que Ele
realizou para libertar Israel da escravidão. Mas quando surgem conflitos,
parece que esses sinais desaparecem: ansiamos por uma manifestação
extraordinária e mais clara da proximidade de Deus. Podemos então pensar que,
se Ele não nos salvar imediatamente, não é realmente um Pai tão bom quanto
imaginávamos.
Jesus experimentaria novamente uma tentação semelhante pouco antes de
morrer, quando um dos ladrões lhe disse: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo e
salva-nos a nós!” (Lc 23,39). Esse é um raciocínio que segue uma lógica
esmagadora: se você realmente pode fazer tudo, livre-se dessa situação e
salve-nos. Por outro lado, a atitude do outro ladrão é diferente: “Para nós
isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes” (Lc 23,41). Ele não
se rebela contra o destino que o aguarda, mas aceita a sua condição. Portanto,
não implora ao Senhor que mude a realidade ou resolva todos os seus problemas
agora mesmo, mas reconhece sua realeza e pede que não se esqueça dele:
“Lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino!” (Lc 23,42). Sua oração
não foi uma exigência – mostre-me que você é o Salvador – mas um ato de
abandono nas mãos do Messias: “Queres, Senhor?... Eu também o quero”[4].
“Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’” (Mt 4,7). Cristo
rejeitou a segunda tentação no deserto – e também a tentação dirigida a ele na
cruz – abraçando ainda mais fortemente a vontade de seu Pai: ele aceita que a
salvação seja feita como Ele quer. Jesus não queria testar a Deus ou buscar
atalhos para aliviar a sua dor, pois sabia que Ele buscava apenas o seu bem,
mesmo que às vezes fosse difícil descobrir isso. “Quando te abandonares de
verdade no Senhor, aprenderás a contentar-se com o que vier, e a não perder a
serenidade, se as tarefas – apensar de teres posto todo o teu empenho e
utilizado os meios oportunos – não correm a teu gosto… Porque terão ‘corrido’
como convém a Deus que corram”[5].
Libertar-se dos ídolos
Há um teste final à espera de Jesus. O demônio, astuto e perseverante,
leva-o a uma montanha muito alta, de onde se pode ver os muitos reinos do
mundo, toda a glória e o poder dos homens. Não era Ele o Rei do universo? Não
tinha vindo para unir todos os povos e nações no reino dos filhos de Deus? Um
único gesto seria suficiente para que o tentador o ajudasse a cumprir sua
missão de forma definitiva. “Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de
mim, para me adorar” (Mt 4,9). Mas os joelhos de Jesus não se dobraram.
Adão e Eva, desconfiando de Deus, preferiram se colocar como deuses. Os
israelitas também, em suas andanças pelo deserto, às vezes decidiam construir
suas próprias divindades, na medida de suas ilusões e do reflexo de seus
próprios rostos. Sempre que o homem desconfia de seu Pai, ele acaba adorando a
si mesmo. E, em vez de depositar sua esperança no misterioso, mas eterno, poder
divino, ele escolhe se contentar com sua própria glória passageira, por menor
que seja e que se desvanece facilmente. O diabo pode não nos oferecer hoje
“todos os reinos do mundo” (Mt 4,8), mas ele nos oferece pequenos reinos que
podemos desejar secretamente em nosso coração e nos convence de que isso nos
fará felizes o suficiente para continuarmos caminhando. Assim, divinizamos realidades
que não são Deus, mas “correntes que escravizam”.
O Senhor nos criou para que nossos anseios sejam dirigidos a Ele. Fomos
criados para compartilhar a sua natureza divina – como Adão e Eva pretendiam –
e para sermos felizes – como os israelitas buscavam no deserto. E isso
significa aprender a nos libertar dos ídolos que nos desviam do caminho para a
realização. “O dinamismo do desejo está sempre aberto à redenção. Também quando
ele se adentra por caminhos desviados, quando persegue paraísos artificiais e
parece perder a capacidade de ansiar pelo bem verdadeiro. Também no abismo do
pecado não se apaga no homem aquela centelha que lhe permite reconhecer o
verdadeiro bem, saboreá-lo, e assim iniciar um percurso de subida, no qual
Deus, com o dom da sua graça, nunca deixa faltar a sua ajuda. De resto, todos
temos necessidade de percorrer um caminho de purificação e de cura do desejo.
Somos peregrinos rumo à pátria celeste, rumo àquele bem pleno, eterno, que nada
jamais nos poderá extirpar. Por conseguinte, não se trata de sufocar o desejo
que se encontra no coração do homem, mas de o libertar, para que possa alcançar
a sua verdadeira altura”[6].
O orgulho insinua que não precisamos do Senhor. Mas Jesus não se deixa
enganar pela miragem que o demônio lhe apresenta. Ele sabe que nos arredores de
Jerusalém, no Calvário, as portas do paraíso se abrirão para sempre. Da Cruz,
ele nos ensinará em que consiste a verdadeira felicidade: dar a vida por amor.
“Vai-te embora, Satanás, porque está escrito: 'Adorarás ao Senhor teu Deus e
somente a ele prestarás culto'” (Mt 4,10).
* * *
São Mateus termina seu relato das tentações destacando que o demônio foi
embora e os anjos se aproximaram e serviram a Jesus (cf. Mt 4,11). Às vezes, as
forças do demônio parecem invencíveis. As tensões a que ele as submete parecem
nunca ter fim. É exatamente isso que ele busca: roubar-nos a esperança e
fazer-nos acreditar que a única saída é ceder ao que ele propõe. Mas a maneira
como Jesus experimenta a tentação nos mostra que essa abordagem está errada e
que a vitória é possível. “O diabo é o grande mentiroso, o pai da mentira. Ele
sabe falar bem, sabe até cantar para nos enganar. Ele é um derrotado, mas se
move como um vencedor. Sua luz é brilhante como fogos de artifício, mas não
dura, ela se apaga, enquanto a luz do Senhor é suave, mas permanente”[7].
Cristo pode nos ajudar a aceitar as tentações com serenidade e a vencer
o medo nos momentos de dúvida e fraqueza, pois sabe que nenhuma ação do demônio
será superior à força humana auxiliada pela graça (cf 1 Co 10,
13). Em nenhum momento Jesus entra em diálogo com o tentador, imaginando o que
aconteceria se Ele aceitasse alguma de suas propostas. Em vez disso, Ele o
interrompe de forma decisiva, tomando uma resolução firme. É assim que responde
aos convites do demônio: escolhendo o bem que procura esconder dele. Não quer
se alimentar de pão, mas da palavra divina. Não quer colocar Deus à prova, mas
confia nele. Ele não quer os reinos do mundo, mas servir somente a seu Pai.
Dessa forma, o Evangelho nos mostra o Senhor como “o novo Adão, que
ficou fiel onde o primeiro sucumbiu à tentação. Jesus cumpre à perfeição a
vocação de Israel: contrariamente aos que provocaram outrora a Deus durante
quarenta anos no deserto (cfr. Sal 95,10), Cristo se revela como o Servo de
Deus totalmente obediente à vontade divina”[8].
A vitória do Senhor sobre o tentador também é benéfica para nós: “Porque não
temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, mas
que foi provado em tudo, como nós, exceto no pecado” (Hb 4,15). “Cristo não
somente conhece, como Deus, a fraqueza da nossa natureza, mas também, como
homem, experimentou os nossos sofrimentos, embora não tivesse pecado. Por
conhecer nossa fraqueza, é capaz de nos dar a ajuda de que precisamos e, ao nos
julgar, Ele o fará tendo em mente essa fraqueza”[9].
Depois desse episódio, Jesus começará sua vida pública. Naqueles
quarenta dias no deserto, Ele queria fortalecer seu espírito para sua missão
redentora que seria difícil e exigente. Os desertos pelos quais podemos passar
em nossas vidas – tentações, crises, contratempos – também podem servir como um
impulso para amadurecer nossa vocação cristã e podem ser um momento de graça.
Cristo nos ajudará a passar por eles de mãos dadas, sabendo que Deus se esconde
em todo deserto.
[1] Francisco, Ângelus,
6/03/2022.
[2] É
Cristo que passa, n. 75.
[3] Bento
XVI, Audiência, 13/02/2013.
[4] Caminho,
n. 762.
[5] Sulco,
n. 860.
[6] Bento
XVI, Audiência, 7/11/2012.
[7] Francisco,Homilia,
8/05/2018.
[8] Catecismo
da Igreja Católica, n. 539.
[9] Teodoreto
de Ciro, Interpretatio ad Hebraeos, ad loc.
Fonte: https://opusdei.org/pt-br