'Meu pai se matou, e hoje sou padre e especialista em suicídio'
- Author, Mariana Alvim
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter,@marianaalvim
- 28 fevereiro 2024
*Esse texto é o primeiro da
série "Suicídio &
Fé" da BBC News Brasil, que abordará nas próximas semanas o tabu
religioso com o suicídio, com foco nas religiões com mais adeptos no Brasil.
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Como a rígida doutrina católica
mudou
O que aconteceu com o pai de Licio, de não ter tido
as missas funerárias tradicionais, era parte de uma longa tradição doutrinária
na Igreja Católica.
Do século 6 ao final do século 20, a orientação
formal da Igreja Católica era não fazer os rituais funerários normais para um
fiel que morresse por suicídio, segundo a pesquisadora americana Ranana Dine —
nem o funeral cristão, nem enterro em espaços sagrados ou missas.
Dine, que é judia e faz doutorado em Ética
Religiosa na Universidade de Chicago, estuda desde a faculdade questões
religiosas com o olhar da filosofia.
No mestrado na Universidade de Cambridge, ela
analisou as doutrinas católica e judaica sobre o suicídio.
Uma das origens da histórica posição católica sobre
o suicídio está nos Dez Mandamentos, cuja base está no Antigo Testamento.
Um destes mandamentos afirma: "Não
matarás". A interpretação que vingou por muito tempo é que se matar é uma
violação desse princípio.
"Grande parte do problema com o suicídio é que
ele era visto como alguém querendo agir intencionalmente contra Deus e o
domínio de Deus sobre a vida", explica Dine.
Especialistas apontam também que contribui para a
aversão ao assunto no cristianismo o relato de que, segundo os evangelhos
canônicos (aqueles reconhecidos como autênticos pela Igreja Católica), Judas
Iscariotes, traidor de Jesus Cristo, se suicidou.
As primeiras discussões acerca do suicídio surgiram
nos sínodos, reuniões convocadas por uma autoridade da Igreja Católica, do
século 5.
A formalização de uma postura punitiva quanto ao
ato não demorou a aparecer.
No século 6, durante o Conselho de Braga de 563, um
grupo de bispos promulgou alguns decretos, entre eles a proibição de que
suicidas recebessem grandes cerimônias ou fossem enterrados dentro de igrejas.
Ao longo da Idade Média, outros documentos
reafirmaram essa posição.
Na Europa, isso se combinou com costumes da época.
No artigo Christianity and Suicide, os pesquisadores Nils Retterstøl e Øivind Ekeberg afirmam que, em muitas partes do continente,
"o corpo [de um suicida] era arrastado pelas ruas e enterrado em uma
encruzilhada, com uma estaca cravada e uma pedra colocada sobre o rosto".
O artigo aponta que o Iluminismo, movimento marcado
pelo valorização da racionalidade, trouxe no século 18 uma visão menos
condenatória do suicídio e mais crítica ao catolicismo — que, no entanto, ainda
demoraria alguns séculos para mudar sua posição sobre o assunto.
O Código de Direito Canônico de 1917 reforçou mais
uma vez o caráter pecaminoso do suicídio.
Uma das normas desse código afirmava que "a
menos que tenham dado sinal de arrependimento antes da morte", aqueles que
"se mataram de maneira deliberada" estavam entre aqueles
"privados de um sepultamento eclesiástico" — assim como excomungados
e pecadores manifestos.
Esse trecho foi retirado na revisão do código em
1983.
"O contexto externo [da mudança] era o
desenvolvimento da ideia da depressão e de outras doenças mentais como
patologias tais quais a doenças físicas, que não eram culpa do indivíduo",
explica a pesquisadora Ranana Dine.
O Código de Direito Canônico, na avaliação de Dine,
é o "documento mais importante" de normas da Igreja Católica.
Mas há outros documentos relevantes que também
demonstram mudanças na conduta católica sobre o suicídio, como o Catecismo de
1992 — que tem um caráter mais de orientação e educação do que uma função
normativa como o código.
Um trecho do Catecismo afirma que o "suicídio
contraria a inclinação natural do ser humano para conservar e perpetuar a sua
vida" e é "contrário ao amor do Deus vivo".
"Ofende igualmente o amor do próximo, porque
quebra injustamente os laços de solidariedade com as sociedades familiar,
nacional e humana [...]", diz o documento.
Mas um trecho seguinte reconhece que
"perturbações psíquicas graves, a angústia ou o temor grave duma provação,
dum sofrimento, da tortura, são circunstâncias que podem diminuir a
responsabilidade do suicida".
Por isso, o documento conclui: "Não se deve
desesperar da salvação eterna das pessoas que se suicidaram. Deus pode, por
caminhos que só Ele conhece, oferecer-lhes a ocasião de um arrependimento
salutar. A Igreja ora pelas pessoas que atentaram contra a própria vida".
Em um discurso de outubro de 2021, no Dia Mundial
da Saúde Mental, o papa Francisco defendeu o acolhimento a pessoas que se
suicidaram e às suas famílias.
"Gostaria de lembrar dos nossos irmãos e irmãs
afetados por distúrbios mentais e também as vítimas, frequentemente jovens, do
suicídio", disse o papa.
"Vamos rezar por eles e por suas famílias,
para que eles não sejam deixados sozinhos ou sejam discriminados, mas sim bem
recebidos e apoiados."
Dine avalia que a doutrina sobre o suicídio não é
algo que divida diferentes alas da Igreja Católica tal qual outras questões
controversas como, por exemplo, o casamento gay e o aborto.
A pesquisadora vê de forma positiva as mudanças
recentes na abordagem católica ao assunto, mas diz compreender o posicionamento
anterior.
"Fico satisfeita que a Igreja tenha mudado sua
posição sobre o enterro de suicidas, mas acho que as normas anteriores vinham
de uma abordagem teológica sincera", afirma.
Dine argumenta que, por haver razões teológicas
para a Igreja Católica ser contra o suicídio, faz sentido dentro do catolicismo
o suicídio ser visto como um pecado.
"Acho que alguém como [Santo] Agostinho e outras pessoas realmente acreditavam que Deus tem o domínio do
mundo, dos nossos corpos, e negar isso a Deus realmente vai contra grandes
princípios do cristianismo."
Na sua avaliação, a Igreja Católica ainda considera
o suicídio um pecado — mas não um "pecado mortal", aquele em que não
há qualquer esperança de salvação da alma.
"Ainda há o sentido de pecado, de falha, mas
envolto nessa postura de compaixão, com a ideia de que a pessoa não sabia o que
estava fazendo. Então, é um pecado de natureza diferente", avalia Dine.
O padre Licio Vale também não firma uma definição.
"O suicídio continua sendo pecado nesse
sentido de que ninguém pode matar a si mesmo, ter a intenção de se matar.
Porque a vida pertence unicamente a Deus, então, nesse sentido, a gente diz que
é um mal moral", afirma o padre.
"Mas o conceito de pecado tem a ver com
intenção. A maioria dos estudos diz que a maioria das pessoas que se mata não
tem essa intenção. Por isso, a gente evita dizer hoje que é pecado."
Licio reconhece que o tabu com o suicídio de fundo
religioso ainda é "muito presente" na cultura popular.
Durante a apuração dessa reportagem, por exemplo,
uma fonte deu um relato que não pôde ser confirmado pela BBC News Brasil de que
vizinhos faziam o sinal da cruz toda vez que passavam na frente da casa de uma
mãe que perdeu a filha para o suicídio.
"Ainda existe essa cultura errônea de que quem
se mata vai para o inferno. Por isso, é importante que a gente fale que não é
mais assim, que a Igreja não pensa mais assim", diz o padre.
"A doutrina continua a mesma, ninguém pode se
matar, mas ela evoluiu no sentido de que o suicida não quer, não tem a
intenção, segundo a ciência, de pecar. Ele quer matar a dor emocional."
Por isso, o padre afirma que a decisão pela
salvação da alma de um suicida ficaria a cargo de um "Deus
misericordioso".
Perguntado se a Igreja Católica tem
responsabilidade nesse tabu persistente, o padre consente.
"Claro, uma doutrina que foi ensinada durante
mais de 900 anos, quase mil anos, é óbvio que vai levar muito tempo para que
essa doutrina possa ser definitivamente esclarecida", avalia Licio.
"Mas a Igreja Católica, institucionalmente,
está aprendendo a lidar com o fenômeno."
Apesar de ainda ser o maior, o segmento católico
está diminuindo seu percentual na população desde o primeiro Censo, de 1872.
Por outro lado, no período mais recente, de 2000
para 2010, houve aumento do percentual de espíritas, evangélicos e pessoas sem
religião.
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*Caso seja ou conheça alguém
que apresente sinais de alerta relacionados ao suicídio, ou caso você tenha
perdido uma pessoa querida para o suicídio, confira alguns locais para pedir
ajuda:
- O Centro de Valorização da
Vida (CVV), por meio do telefone 188, oferece atendimento gratuito
24h por dia; há também a opção de conversa por chat, e-mail e busca por
postos de atendimento ao redor do Brasil;
- Para jovens de 13 a 24
anos, a Unicef oferece também o chat Pode Falar;
- Em casos de emergência,
outra recomendação de especialistas é ligar para os Bombeiros (telefone 193) ou para a Polícia Militar (telefone 190);
- Outra opção é ligar para o
SAMU, pelo telefone 192;
- Na rede pública local, é
possível buscar ajuda também nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em
Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Pronto Atendimento (UPA) 24h;
- Confira também o Mapa da Saúde Mental, que ajuda a encontrar
atendimento em saúde mental gratuito em todo o Brasil.
- Para aqueles que perderam alguém para o suicídio, a Associação Brasileira dos Sobreviventes Enlutados por Suicídio (Abrases) oferece assistência e grupos de apoio.