Pe. Lívio | VITOR SERRANO/BBC NEWS
BRASIL
'Meu pai se matou,
e hoje sou padre e especialista em suicídio'
Author,
Mariana Alvim
Role,
Da BBC News Brasil em São Paulo
Twitter,@marianaalvim
28
fevereiro 2024
*Esse
texto é o primeiro da série "Suicídio
& Fé" da
BBC News Brasil, que abordará nas próximas semanas o tabu religioso com o
suicídio, com foco nas religiões com mais adeptos no Brasil. Acompanhe as
publicações no nosso site e redes sociais.
Suicídios de padres
Desde 2016, Licio voltou a conviver mais de
perto com notícias de mortes por suicídio: ele tem se dedicado a fazer um
levantamento detalhado de padres que tiraram a própria vida.
Licio afirma que os dados de mortes entre
sacerdotes são ainda mais alarmantes do que na população geral.
Para isso, o especialista compara a média de
mortes de padres que ele registrou em relação ao total de padres no Brasil com
a taxa de mortes por suicídio na população brasileira — embora esses números
não resultem de uma mesma metodologia.
De acordo com os dados mais recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, houve 8 suicídios para cada 100 mil habitantes no Brasil.
Em 2022, Licio registrou 5 suicídios de padres.
Considerando que o país tinha naquele ano cerca de 21,8 mil padres, segundo a
Comissão Nacional de Presbíteros, isso daria aproximadamente 23 suicídios a
cada 100 mil padres.
De 2016 a 2022, o pesquisador contabilizou um
total de 33 mortes de padres por suicídio, com média de 4,7 por ano.
Os anos em que mais mortes foram registradas
foram 2017 e 2021, com 10 suicídios de padres cada um.
Licio reúne esses dados a partir de informações
divulgadas por dioceses, pela imprensa ou por fontes da internet.
As dioceses, segundo ele, estão cada vez mais
publicando a causa da morte quando há um suicídio comprovado, embora ainda haja
muito "mistério" em torno desses dados.
O pesquisador conta que nunca passou pela
situação de conhecer pessoalmente algum padre que tenha se matado, mas diz que
já foi procurado por dois amigos padres que pediram ajuda por questões de saúde
mental, a quem Licio recomendou tratamento psicológico e psiquiátrico.
Mesmo não conhecendo pessoalmente os padres que
se mataram, Licio diz que se sente abatido ao documentar as mortes de colegas.
"Por exemplo, um caso de um padre jovem.
Isso me impacta porque é alguém que tem uma vida pessoal e uma vida no
sacerdote inteira pela frente. Sempre me impacta", desabafa.
Licio afirma que a escolha do sacerdócio
"não imuniza" os padres de lutas internas e desafios pessoais.
Licio Vale se dedica desde 2016 a contabilizar mortes de padres por
suicídio/ VITOR SERRANO/BBC NEWS BRASIL
Licio Vale se dedica desde 2016 a contabilizar mortes de padres por suicídio/ VITOR SERRANO/BBC NEWS BRASIL
Há particularidades dessa ocupação que afetam a
saúde mental, aponta Licio, como o excesso de trabalho, a solidão e a cobrança
excessiva.
"A vida do padre é muito mais complicada
do que a gente imagina", ele diz.
"Vou te fazer uma pergunta: onde você vai
passar o Natal de 2030? Se eu estiver aqui na paróquia em 2030, às 18h vou ter
uma missa numa comunidade e às 20 horas eu tenho missa aqui. Eu já tenho
compromisso assumido para daqui a sete anos."
O padre afirma que a solidão é outro fator de
risco grande para o suicídio no clero, principalmente os diocesanos — que estão
vinculados a uma diocese e não a uma ordem religiosa, como os franciscanos e
beneditinos.
"Um padre às vezes mora sozinho na casa
paroquial, fica longe da família, tem poucos amigos verdadeiros que gostem da
pessoa e não do padre", diz Licio.
"E a gente se cobra em termos de sermos
coerentes com aquilo que pregamos, com aquilo que vivemos. O povo nos cobra
posturas, comportamentos. A própria Igreja nos cobra posturas e
comportamentos."
Licio alerta que o número de suicídios entre
padres pode ser muito maior por conta da subnotificação — a Organização Mundial
da Saúde (OMS) afirma que, para cada morte por suicídio confirmada, há
provavelmente mais de 20 tentativas.
A reportagem também buscou dados sobre
suicídios entre líderes religiosos — não só católicos — a partir do DataSUS,
sistema mantido pelo Ministério da Saúde, mas especialistas consultados
afirmaram não ser possível obter informações confiáveis com esse recorte.
A BBC News Brasil procurou a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para obter um posicionamento oficial da
Igreja Católica no Brasil sobre o cuidado com a saúde mental de padres e a
doutrina acerca do suicídio de forma geral.
A CNBB respondeu que não foi encontrado bispo
"com disponibilidade para atender à demanda".
Segundo a OMS, mais de 700 mil pessoas morrem a
cada ano por suicídio no mundo.
'Fala de culpabilização ligada à religião pode
causar muita dor'
De acordo com a organização, a ligação entre
suicídio e distúrbios mentais — notadamente a depressão e o alcoolismo — já foi
bem demonstrada, mas esse tipo de morte também ocorre após crises pontuais,
como términos de relacionamentos e problemas financeiros.
Taxas de suicídio tendem a ser maiores também
em cenários de abuso, violência, desastres e vulnerabilidade social — como
entre refugiados e migrantes, prisioneiros e pessoas LGBTQIA+.
Um outro estudo, publicado na revista científica The Lancet Regional Health Américas, calculou que, entre 2011 e 2022, a taxa de suicídios a cada 100 mil
habitantes cresceu em média 3,7% ao ano no Brasil.
Em 2011, a taxa era de 5 por 100 mil, chegando
a 7,3 por 100 mil em 2022.
Todas as regiões brasileiras tiveram aumento
nas taxas. Entre jovens (10 a 24 anos), o crescimento foi de 6%,
significativamente maior do que na população geral.
No mundo, considerando dados da OMS de 2019, a taxa média de suicídios foi de 9 por 100 mil habitantes.
Neste relatório, o Brasil aparece abaixo da
média global, com 6,4 suicídios por 100 mil habitantes.
Brasil foi o 8º país na América do Sul com a maior taxa
de suicídios em 2019
Taxa a cada 100 mil habitantes
Fonte: OMS, Estimativas Globais de Saúde de 2000-2019
A estimativa considera tanto homens como
mulheres. Dados foram padronizados por idade: para facilitar comparação, um
padrão de distribuição etária da população é aplicado para todos os países.
A psicóloga Karen Scavacini, fundadora e
diretora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio, afirma
que as religiões — não apenas o catolicismo — podem ter um papel ambíguo na
prevenção e na posvenção do suicídio.
"Os estudos mostram que [a religião] é um
fator de proteção, e é, na maioria das vezes", diz Scavacini.
"Até o medo de ir para o inferno, de ir
para o umbral, embora muitas religiões não falem mais sobre isso, pode fazer com
que a pessoa não se mate. Então, acaba protegendo.”
A sensação de pertencimento a uma comunidade
religiosa é outro fator protetor contra o suicídio, aponta a psicóloga.
"Quando a gente põe na balança, a
espiritualidade tem um fator mais de proteção do que de risco, porém — e esse é
o grande porém —, quando ela se torna um fator de risco, pode ser um risco
importante."
Scavacini, que é doutora em psicologia pela
Universidade de São Paulo (USP), afirma que o tabu religioso pode ser danoso em
vários estágios relacionados ao suicídio.
"Começando pela prevenção, o que a gente
escuta de mais comum é a relação de vergonha quando uma pessoa está pensando em
se matar", diz.
"Isso piora toda a situação, porque a
pessoa pensa: 'Puxa, além de tudo, eu sou um pecador, porque eu estou pensando
em me matar."
A psicóloga cita também casos de pessoas cuja
sexualidade não é bem aceita em sua religião, o que agrava o quadro de saúde
mental.
Também há aquelas que deixam de procurar ajuda
especializada depois que "foram falar com o pastor, com o padre, e a
resposta foi de que estava faltando Deus, que estava faltando oração, que
psicólogo não resolvia nada, que o que resolve é a igreja".
"Há ainda o caso das pessoas que tentaram
[se suicidar]. Então, entram as questões de pecado, de culpabilização, de falta
de reza, de estar possuído, e isso de novo vai ser um fator de risco", diz
Scavacini.
"Pode ser um gatilho, pode ocasionar um
isolamento dessa pessoa da comunidade religiosa, que no geral é um fator de
proteção."
A psicóloga lembra também dos enlutados,
cenário em que a questão religiosa talvez se torne ainda mais
"delicada".
Ela diz ser comum estas pessoas ouvirem,
inclusive em velórios, que alguém que elas perderam para o suicídio vai para um
lugar de sofrimento após a morte.
"O impacto da fala de um religioso para
uma família enlutada é muito grande. O tabu religioso não está só na figura
religiosa, ele está em toda uma sociedade."
"Para quem está de luto, que está buscando
uma resposta, muitas vezes em choque, que pode estar naquela culpa que é
própria do luto por suicídio, uma fala de culpabilização ligada a religião tem
um peso muito grande e pode causar muita dor."
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*Caso
seja ou conheça alguém que apresente sinais de alerta relacionados ao suicídio,
ou caso você tenha perdido uma pessoa querida para o suicídio, confira alguns
locais para pedir ajuda:
-
O Centro de Valorização da Vida (CVV), por meio do telefone 188, oferece
atendimento gratuito 24h por dia; há também a opção de conversa por chat, e-mail e busca por postos de atendimento ao
redor do Brasil;
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Para jovens de 13 a 24 anos, a Unicef oferece também o chat Pode Falar;
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Em casos de emergência, outra recomendação de especialistas é ligar para os
Bombeiros (telefone 193) ou para a Polícia Militar (telefone 190);
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Outra opção é ligar para o SAMU, pelo telefone 192;
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Na rede pública local, é possível buscar ajuda também nos Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Pronto
Atendimento (UPA) 24h;
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Confira também o Mapa da Saúde
Mental,
que ajuda a encontrar atendimento em saúde mental gratuito em todo o Brasil.
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Para aqueles que perderam alguém para o suicídio, a Associação Brasileira dos Sobreviventes Enlutados por Suicídio (Abrases) oferece assistência e
grupos de apoio.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ceq4xl2ppqqo