Translate

sábado, 20 de julho de 2024

Papa: divulgados os logotipos e lemas da viagem apostólica à Bélgica e Luxemburgo

Os logotipos da viagem do Papa à Bélgica e Luxemburgo (Vatican News)

O Papa estará nos dois países europeus de 26 a 29 de setembro próximo. Nas frases que acompanham os gráficos das visitas, o valor do serviço da Igreja à humanidade e o convite a caminhar juntos no caminho da esperança.

Vatican News

O fulgor da arte gráfica para resumir um compromisso e a alma que o está construindo. Há sempre isso em cada logotipo que conta, por meio de imagens, uma viagem apostólica em preparação. Os dois logotipos e os lemas para as duas visitas que o Papa fará a Luxemburgo e à Bélgica, em setembro próximo, foram divulgados nesta terça-feira (25/06).

Logotipo e lema da visita a Luxemburgo

A primeira etapa, em 26 de setembro, é narrada pela silhueta branca contornada de azul, que retrata Francisco que abençoa num fundo amarelo redondo, no qual se destaca a catedral luxemburguesa de Notre Dame. Junto com o amarelo com contorno branco - as cores da bandeira do Vaticano – dominam os tons azuis que alude, explica a nota de apresentação, "à veneração mariana profundamente arraigada na história do catolicismo" do pequeno país. No canto inferior direito, o lema da Viagem Apostólica: "Pour servir", refere-se a Cristo, que veio "não para ser servido, mas para servir". "Assim, seguindo o exemplo de seu Mestre", encerra a breve nota, "a Igreja é chamada a estar a serviço da humanidade.

Logotipo  da visita a Luxemburgo (L'Osservatore Romano)

Logotipo e lema da visita à Bélgica

Em 26 de setembro, Francisco irá à Bélgica, cujo mapa estilizado em azul escuro é a estrutura básica do logotipo. O mapa é atravessado por uma estrada na qual, também estilizada, caminham algumas pessoas de diferentes tamanhos, simbolizando as idades, e de cores diferentes, indicando as culturas. No centro de uma pequena multidão emerge, de branco, a figura do Papa. Abaixo do logotipo está escrito o lema: “En route, avec Espérance” (No caminho, com esperança), que “ressoa – explica a nota de apresentação – como um chamado a caminharmos juntos na estrada que é a história do país, mas é também o Evangelho, o caminho de Jesus Cristo, nossa Esperança”.

Logotipo da visita à Bélgica (L'Osservatore Romano) (L'Osservatore Romano)

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

CATEQUESE: Os Cinco Mandamentos da Igreja

Os Cinco Mandamentos da Igreja (Cléofas)

Os Cinco Mandamentos da Igreja

 POR PROF. FELIPE AQUINO

Uma coisa que muitos católicos não sabem – e por isso não cumprem – é que existem os “Cinco Mandamentos da Igreja”, além dos Dez Mandamentos.

Eles não foram revogados pela Igreja com o novo Catecismo de João Paulo II (1992). É preciso entender que Mandamento é algo obrigatório para todos os católicos, diferente de recomendações, conselhos, etc.

Cristo deu poderes à Sua Igreja para estabelecer normas para a salvação do povo. Ele disse aos Apóstolos:

“Quem vos ouve a mim ouve, quem vos rejeita a mim rejeita, e quem me rejeita, rejeita Aquele que me enviou” (Lc 10,16).

“Em verdade, tudo o que ligardes sobre a terra, será ligado no Céu, e tudo o que desligardes sobre a terra, será também desligado no Céu” (Mt 18,18).

Então, a Igreja legisla com o “poder de Cristo”, e quem não a obedece, não obedece a Cristo, e em consequência, ao Pai.

Para a salvação do povo, então, a Igreja estabeleceu Cinco obrigações que todo católico têm de cumprir, conforme ensina o Catecismo da Igreja. Ele diz:

“Os mandamentos da Igreja situam-se nesta linha de uma vida moral ligada à vida litúrgica e que dela se alimenta. O caráter obrigatório dessas leis positivas promulgadas pelas autoridades pastorais tem como fim garantir aos fiéis o mínimo indispensável no espírito de oração e no esforço moral, no crescimento do amor de Deus e do próximo” (§2041).

Note que o Catecismo diz que isto é o “mínimo indispensável” para o crescimento na vida espiritual; podemos e devemos fazer muito mais, pois isto é apenas o mínimo obrigado pela Igreja. Ela sabe que como Mãe, tem filhos de todos os tipos e condições, portanto, fixa, sabiamente, apenas o mínimo necessário, deixando que cada um, conforme a sua realidade, faça mais. E devemos fazer mais.

1. Primeiro mandamento: “Participar da missa inteira nos domingos e outras festas de guarda e abster-se de ocupações de trabalho”

Ordena aos fiéis que santifiquem o dia em que se comemora a ressurreição do Senhor, e as festas litúrgicas em honra dos mistérios do Senhor, da santíssima Virgem Maria e dos santos, em primeiro lugar participando da celebração eucarística, em que se reúne a comunidade cristã, e se abstendo de trabalhos e negócios que possam impedir tal santificação desses dias (CDC, cân. 1246-1248). (§2042)

Os Dias Santos – com obrigação de participar da missa, são esses, conforme o Catecismo:

“Devem ser guardados [além dos domingos] o dia do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo, da Epifania (domingo no Brasil), da Ascensão (domingo) e do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi), de Santa Maria, Mãe de Deus (1º de janeiro), de sua Imaculada Conceição (8 de dezembro) e Assunção (domingo), de São José (19 de março), dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo (domingo), e por fim, de Todos os Santos (domingo)” (CDC, cân. 1246,1; n. 2043 após nota 252). (§2177)

2. Segundo mandamento: “Confessar-se ao menos uma vez por ano”

Assegura a preparação para a Eucaristia pela recepção do sacramento da Reconciliação, que continua a obra de conversão e perdão do Batismo (CDC, cân. 989).

É claro que é pouco se Confessar uma vez ao ano, seria bom que cada um se Confessasse ao menos uma vez por mês, fica mais fácil de se lembrar dos pecados e ter a graça para vencer os pecados.

3. Terceiro mandamento: “Receber o sacramento da Eucaristia ao menos pela Páscoa da ressurreição”

O período pascal vai da Páscoa até festa da Ascenção, e garante um mínimo na recepção do Corpo e do Sangue do Senhor em ligação com as festas pascais, origem e centro da Liturgia cristã (CDC, cân. 920).

Também é muito pouco Comungar ao menos uma vez ao ano. A Igreja recomenda (não obriga) a Comunhão diária.

4. Quarto mandamento: “Jejuar e abster-se de carne, conforme manda a Santa Mãe de Igreja” (No Brasil é na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa)

Este jejum consiste de um leve café da manhã, um almoço leve e um lanche leve à tarde, sem mais nada no meio do dia, nem o cafezinho. Quem desejar pode fazer um jejum mais rigoroso; o obrigatório é o mínimo. Os que já tem mais de sessenta anos estão dispensados da obrigatoriedade, mas podem fazer se desejarem.

Diz o Catecismo que o jejum “Determina os tempos de ascese e penitência que nos preparam para as festas litúrgicas; contribuem para nos fazer adquirir o domínio sobre nossos instintos e a liberdade de coração (CDC, cân. 882)”.

5. Quinto mandamento: “Ajudar a Igreja em suas necessidades”

Recorda aos fiéis que devem ir ao encontro das necessidades materiais da Igreja, cada um conforme as próprias possibilidades (CDC, cân. 222). Não é obrigado que o dízimo seja de 10% do salário, nem o Catecismo e nem o Código de Direito Canônico obriga isto, mas é bom e bonito. O importante é, como disse São Paulo, dar com alegria, pois “Deus ama aquele que dá com alegria” (cf. 2Cor 9, 7). Esta ajuda às necessidades da Igreja pode ser dada um parte na paróquia e em outras obras da Igreja.

Nota: Conforme preceitua o Código de Direito Canônico, as Conferências Episcopais de cada pais, podem estabelecer outros preceitos eclesiásticos para o seu território (CDC, cân. 455).(§2043)

Demos graças a Deus pela Santa Mãe Igreja que nos guia. O Papa Paulo VI disse que “quem não ama a Igreja não ama Jesus Cristo”.

Prof. Felipe Aquino

Fonte: https://cleofas.com.br/

«A Igreja é uma comunhão»

A Trindade , Andrei Rublëv, do Mosteiro da Trindade de São Sérgio, Galeria Tretyakov, Moscou | 30Giorni

«A Igreja é uma comunhão»

Quando nós, cristãos, dizemos comunhão, designamos antes de tudo o mistério da comunhão, que é a própria vida da Trindade. E dizemos também que nesta comunhão participamos do corpo e do sangue de Cristo. Uma contribuição do prior da comunidade monástica de Bose.

por Enzo Bianchi

Enzo Bianchi [© Contrasto] | 30Giorni

No oficial relatório final do Sínodo dos Bispos de 1985 foi dito que “a ideia central e fundamental nos documentos do Concílio Vaticano II deve ser identificada na eclesiologia da comunhão ”, e esta observação é agora amplamente partilhada na Igreja Católica. : podemos dizer que houve muitas contribuições teológicas sobre o assunto, entre as quais as de Jean Jérôme Hamer, Jean-Marie Roger Tillard, Ioannis Zizioulas, Walter Kasper parecem decisivas...

Mas uma teologia autêntica é capaz de gerar também uma espiritualidade ou melhor, uma teologia autêntica é sempre espiritual, pneumática, isto é, capaz de impactar a vida e a experiência interior do cristão e da comunidade. Por outro lado, a palavra koinonía no Novo Testamento indica antes de tudo a vida da Igreja nascida da descida do Espírito Santo, aquela vida " epì tò autò " ( Atos 2, 44), perseverante na didaché apostólica , na fração do pão, na oração. A palavra koinonía resume as perseveranças essenciais da Igreja nascente e dá-lhe um rosto, de modo que a Igreja é a epiphàneia da koinonía trinitária, uma koinonía participada na dinâmica do Espírito Santo através da comunhão apostólica (ver 1 João 1, 3.6) , uma koinonía que é cumprimento da salvação anunciada pelo Evangelho.

Quando nós, cristãos, dizemos comunhão, designamos antes de tudo o mistério eterno da comunhão que é a própria vida de Deus, mas também dizemos - já que somos syn-koinonòi , coparticipantes (ver Fl 1,7; Ap 1,9). ) - que participemos nesta comunhão no corpo de Cristo, no sangue de Cristo: koinonia é portanto a “essência”, não a “nota” da Igreja. E se a vida do cristão e da Igreja é vida segundo o Espírito Santo, isto é, proveniente do Espírito, e vida em Cristo, então a espiritualidade só pode ser uma espiritualidade de comunhão. Por outras palavras: a vida do cristão e da Igreja deve ser moldada pela comunhão, que não é opcional, não é uma descoberta recente da teologia, mas uma realidade constitutiva.

 Koinonia é forma Ecclesiae! Certamente, a comunhão dos cristãos entre si e com Deus na peregrinação da Igreja rumo ao Reino será sempre frágil, continuamente posta à prova e muitas vezes até contradita; será uma comunhão que tende a ser plena, mas que nunca o será, exceto no Reino eterno. Além disso, vemos que ela está ferida, ofendida, já na Igreja primitiva, como nos testemunha o Novo Testamento (cf.1Jo 2, 18; 3Jo 9-10…); no entanto, tanto então como agora, na Igreja é salvaguardada e perseguida a vontade de Deus que exige incessantemente a realização da comunhão visível do corpo de Cristo, sendo um ( en èinai ) como o Pai e o Filho são um ( Jo 17 , 11 ).

Contudo, devemos perguntar-nos: os cristãos estão conscientes desta necessidade radical da comunhão como forma da sua vida e da vida eclesial? A este respeito, parece-me importante que no Novo millennio ineunte o Papa João Paulo II tenha conseguido não só indicar a força da koinonía , mas apelou a uma espiritualidade de comunhão , especificando-a nas suas manifestações e realizações e retomando o léxico caro aos Padres medievais que falavam da comunidade cristã como “casa de comunhão”, portanto capaz de ser “escola de comunhão” ( Novo millennio ineunte 43). Sim, porque a eclesiologia de comunhão deve materializar-se em instrumentos e estruturas! Mas isto só é possível e autêntico se se segue um caminho espiritual , só se se consegue estabelecer uma espiritualidade de comunhão no tecido quotidiano das Igrejas.

E na sua carta apostólica João Paulo II delineia esta espiritualidade: deve ser contemplada antes de tudo no mistério da Trindade de Deus que vive em nós e faz de nós cristãos a sua morada. Trata-se portanto, diz João Paulo II, de fazer nascer e desenvolver a capacidade de sentir o irmão na fé (mesmo o irmão com quem a comunhão não é plena) como membro do corpo de Cristo, um irmão meu, com quem deve haver conhecimento e partilha mútuos. No espaço cristão, de fato, o outro não é “inferno” (como afirmou Jean-Paul Sartre), mas é “dom de Deus”, “presente para mim”; é o que me falta e o que me revela a minha insuficiência.

Não, não é possível ser cristão e não só não querer a unidade, mas não fazer todo o possível pela comunhão. Quem age e vive para a comunhão com Cristo não pode, simultaneamente, deixar de agir e viver para a reconciliação e a comunhão com os seus irmãos, membros do seu próprio corpo. A estas indicações que o Novo millennio ineunte nos deixou gostaria de acrescentar algumas urgências para uma espiritualidade de comunhão verdadeiramente inspirada na Ecclesiae primitivae forma . Em primeiro lugar, a necessidade de a comunhão ser plural . Nunca esqueçamos que a pluralidade e a diversidade são atestadas pelos e nos escritos fundadores da nossa fé. Do único Senhor Jesus Cristo – “o mesmo ontem, hoje e eternamente” ( Hb. 13, 8) – foram-nos dados quatro Evangelhos, ou seja, quatro anúncios diferentes, porque não é a fixidez de um livro, de um escrito, mas sim o dinamismo do Espírito Santo que está na origem do cristianismo. Desde o início houve uma pluralidade de expressões bíblicas, de eclesiologias, de concepções cristológicas, de práticas litúrgicas, de testemunhos e formas de missio , de acentos espirituais... Esta pluralidade - que reflete a policromia, a sophia multicolorida de Deus (cf. Ef 3, 10) e a inesgotabilidade do mistério de Cristo acolhido nas diferentes culturas - é uma riqueza de dons, mas é também a negação de todo o fundamentalismo e de todo o fundamentalismo cristão.

Sim, se a diversidade for acolhida como um dom e não for considerada uma anomalia, se a Igreja “ católica ” souber acolher a particularidade das Igrejas locais, se souber agradecer pelas riquezas e pelos tesouros que são trazidos ao pelas diversas culturas e tradições, e consegue realizar o intercâmbio destas riquezas entre as Igrejas particulares, então torna-se verdadeiramente a Igreja na qual brilha «a multiforme sabedoria de Deus» ( Ef 3,10), «a multiforme graça de Deus" ( 1Pd 4, 10).

Por outro lado, a teologia, a liturgia, a espiritualidade e o direito não podem ser desenvolvidos e conhecidos apenas a partir de um único centro, mas devem ser laboratórios nos quais se reúnem os contributos da experiência das diferentes Igrejas locais: vividos, partilhados e também corretos no diálogo e comparação entre as Igrejas, animadas pelo Espírito de comunhão.

É claro que aqui também surge um problema significativo: existe um limite para a diversidade, que conhecemos como riqueza, mas às vezes também como uma possível tentação que leva à divisão, à oposição mútua? Uma questão delicada – reconhece o Metropolita Zizioulas – que diz respeito sobretudo ao problema ecuménico. E declara sabiamente que “a condição mais importante da diversidade é que ela não destrua a unidade”. Esta é, aliás, a aplicação eclesial da paranésia paulina sobre a unidade do corpo, sobre a possibilidade de escandalizar um membro, sobre a caridade que deve sempre prevalecer: a relação “um-muitos”, “unidade-diversidade” é sempre ser vivida na obediência do único corpo e da diversidade dos dons do Espírito Santo (não há vida “ en Christò ” sem a koinonía do Espírito Santo). Para usar a linguagem de São Máximo, o Confessor, a “diferença” ( diaphorìa ) é positiva, mas nunca deve tornar-se “divisão” ( diàiresis ).

Certamente – deve ser reiterado com força – esta suposição de diversidade e alteridade não abre espaço para o relativismo se for aceito que em cada encontro e confronto, Jesus Cristo, o Kyrios , reina como o terceiro salvador . É ele, o Kyrios , que une ao mesmo tempo que distingue, que une ao mesmo tempo que personaliza, que conduz todos para o Reino vindouro. E nesta espiritualidade de comunhão o reconhecimento de Kyrios lembra e garante que a diversidade dos dons se faz também na oração : oração uns pelos outros, oração comum, verdadeira epiclese de uma única Eucaristia. É na oração que trazemos tudo o que somos e também tudo o que ainda não somos, mas que devemos nos tornar conforme a vontade e o chamado do Senhor.

A oração que devemos fazer com insistência é que o Senhor nos permita viver esta comunhão plural, para que a descrição do corpo eclesial que nos foi deixada por Anselmo de Havelberg (século XII) nos seus Diálogos encontre autêntica realização :

Unum corpus Ecclesiae,
quod Spiritu Sancto vivificatur ,
regitur et gubernatur…
unum corpus Ecclesiae un Spiritu Sancto vivificari…
sempre unum una fide, sed multiformiter distintosum
multiplici vivendi varietate (Diálogos)

Arquivo 30Dias – 08/09 - 2010

Fonte: http://www.30giorni.it/

As esperanças da Planície de Nínive, dilacerada pelo Daesh

(Viagem do Papa a Mossul, Iraque. Photo by AFP/Vincenzo Pinto)  (AFP or licensors)

Dez anos depois da devastação causada pelo Daesh na histórica região da Alta Mesopotâmia, o arcebispo caldeu de Mossul testemunha uma tímida restabelecimento da confiança entre os habitantes da Planície de Nínive. Apesar das marcas deixadas pela ideologia islâmica em certas mentes, chegou agora o momento de a recuperação econômica permitir um regresso mais tangível das famílias que fugiram do EI.

Delphine Allaire - Cidade do Vaticano

Junho de 2014, Mosul e a Planície de Nínive, no norte do Iraque, são conquistadas pelo grupo Estado Islâmico, que semeia morte e destruição por onde passa. Um quarto da população, principalmente cristãos e yazidis, fugiu da cidade.

A memória permanece dolorosa, mesmo com a libertação três anos mais tarde. Uma década depois, o livro do êxodo ainda não foi concluído para os moradores da região. Apesar dos receios que permanecem, um lento movimento de regresso está acontecendo. Com o retorno da ordem e da segurança às ruas de Mosul, os residentes estão finalmente conseguindo respirar. O arcebispo caldeu da cidade, dom Michael Najeeb - que acolheu um Papa pela primeira vez na história em março de 2021 -, testemunha o renascimento das esperanças nesta cidade mesopotâmica, emblema histórico de paz e coexistência, na encruzilhada de culturas e religiões.

Dez anos depois, quais são as cicatrizes e feridas ainda abertas da batalha de Mosul?

Desde a libertação da Planície de Nínive das garras dos jihadistas, o regresso das famílias cristãs continua tímido em Mossul, mas é bastante grande e significativo na Planície de Nínive. Esta catástrofe atingiu todos os residentes, não apenas os cristãos. Aqueles que permaneceram em Mosul durante o período do Daesh também pagaram um preço elevado.

Uma verdadeira mudança está ocorrendo hoje. Após a libertação, as pessoas começaram a respirar um pouco mais e a infraestrutura da cidade de Mosul e da Planície de Nínive foi restaurada, assim como a ordem nas ruas, nos prédios e, acima de tudo, na segurança. As pessoas podem caminhar à meia-noite, duas ou três da manhã sem problemas. Não há uma criminalidade aparente. Existem pequenos problemas em torno de Mosul de forma geral, mas continuam a ser menores. A falta de trabalho é mais gritante. Com o desemprego, sem rendimentos, muitas pessoas recorrem à violência. No entanto, ainda deploramos as consequências ideológicas.

Que motivos impedem o regresso das famílias?

Os obstáculos são numerosos, mas acima de tudo trata-se de uma questão financeira. As pessoas perderam quase tudo. Eles ficaram sem nada quando foram forçados a deixar Mosul e a Planície de Nínive quase de mãos vazias e com o mínimo de roupa. Tudo o que eles tinham foi saqueado. Essas pessoas têm que começar do zero.

Na verdade, as pessoas, apesar de todos os progressos realizados em termos de segurança e infraestruturas, continuam preocupadas e hesitantes. Eles compartilham comigo suas incertezas: “Monsenhor, não podemos retornar a Mosul ou à Planície de Nínive sem garantias”. No entanto, ninguém pode dar-lhes garantias. Nem mesmo a Igreja, que também perdeu tudo. As famílias não podem reinvestir na sociedade sem um apoio, especialmente do governo.

Este último apenas começou timidamente a restaurar algumas igrejas, algumas casas, para compensar um pouco, mas isso continua a ser muito pouco. Contamos desde o início, desde a libertação da Planície de Nínive, com ONGs francesas como L'Œuvre d'Orient, europeias ou estadunidenses como a USAID, para apoiar tanto as populações como a construção de casas, para ajudar nas obras.

Além de financeiro, o obstáculo está na falta de confiança no futuro. Algumas pessoas nos recordam que se na primeira vez conseguiram fugir com os filhos e sem bens materiais, quem lhes garantirá que desta vez não perderão os filhos?

Que vitalidade espiritual e pastoral emerge das ruínas de uma sociedade?

Uma árvore não pode ser salva sem as suas raízes. As raízes dão vida. Em um de nossos povoados caldeus, famoso pelas suas vinhas, a cerca de trinta quilômetros de Mosul, no final de 2016, na libertação, já não havia vida. Todas as plantações e casas foram queimadas. As brasas ainda ardiam. Um campo de ruínas, sem pássaros, abelhas, qualquer fauna e flora. Tudo estava morto. Hoje aquele povoado está renovado, há árvores, vinhas, casas e lojas. A vida recomeça.

Constatei que a fé, mesmo entre crianças, adultos e adolescentes, tornou-se cada vez mais forte. As atividades pastorais aumentaram enormemente graças às ONGs que também apoiaram a vida espiritual e pastoral. É um sinal de esperança há quatro anos.

Também celebramos juntos as festividades muçulmanas. Já não pensamos em termos de rótulos e categorias como antes, na era do Daesh ou da Al-Qaeda: “Ele é cristão, é muçulmano, é yazidi”. Todos vivem em fraternidade com respeito mútuo.

Nos quatro anos em que estou em Mosul, nunca ouvimos falar de qualquer dano causado pelos nossos muçulmanos. Pelo contrário, mesmo nas mesquitas, às sextas-feiras, quando pregam, as palavras que nos ferem ou nos humilham, como “os ímpios”, “os politeístas”, “pessoas que não respeitam a lei”, “cristãos vão todos para o inferno” não são mais usados. Aqueles que prejudicam os cristãos são condenados pela lei.

Até as casas habitadas por pessoas da Al-Qaeda ou do Daesh e dos seus apoiadores “foram libertadas” pelo governo. A confiança está renascendo gradualmente. Afinal, o patrimônio e a arte nos unem. Os jovens têm muito a ver com isso. Plantam árvores nas ruas, voluntários limpam as ruas. Nem tudo é cor de rosa. A ideologia prejudicial do Daesh e da Al-Qaeda permanece na mente de alguns, mas está sendo gradualmente curada.

Na esteira do Papa, depois do sua viagem histórica realizada em 2021, que passos o senhor vê no diálogo inter-religioso com os muçulmanos?

No Oriente é sempre um monólogo (risos). Aquele que fala, e a quem os outros devem ouvir, é geralmente o que fala mais alto. A palavra “diálogo” relaciona-se mais com o pensamento cartesiano europeu. Aqui estamos habituados ao mais forte: a religião dominante deve falar, as outras devem calar-se ou, no máximo, ouvir, dar a sua opinião sem ser diretamente contrária à dominante. A religião oficial é o Islã, ponto final. Apesar disso, há visitas recíprocas, encontros, às vezes até brincamos entre nós, mulás, bispos e padres, sem nos ofendermos. Podemos dizer a verdade uns aos outros e partilhar as nossas ideias sem que alguém puxe uma arma ou uma Kalashnikov. Existe esta abertura, porque a lei pune aqueles que prejudicam os outros. Isto também visa os fundamentalistas. É claro que não existe um diálogo real que mude os conceitos e o modo de viver. Por exemplo, não existe liberdade religiosa como na Europa ou mesmo no Líbano, que é muito mais avançado do que o resto dos países árabes em termos de liberdade de religião e de expressão.

Mossul será capaz de restaurar sua vocação histórica de paz e coexistência religiosa?

Mossul é a cidade de Jonas, a cidade que deu muitos profetas. Hoje, muitos muçulmanos, cristãos, yazidis e shabaks estão fazendo um retorno à sua própria história para a mostrar. A assiriologia nos níveis linguístico, histórico e arquitetônico está voltando ao primeiro plano.

As muralhas de Nínive, por exemplo, começaram a ser restauradas. Os jovens universitários são atraídos pelos símbolos dos impérios assírio e babilônico, pelas imagens desta antiga Mesopotâmia, berço da escrita e da humanidade. É algo muito bonito que se manifesta através da arte, dos monumentos, do urbanismo. Voltamos a colocar estátuas nas ruas, voltamos a falar do rei Nabucodonosor, o que há algum tempo era impensável por motivos de idolatria.

Vemos cada vez menos pessoas ideologicamente fechadas. Ando pelas ruas com meu hábito vermelho e preto de arcebispo, as pessoas me cumprimentam, tomamos chá, conversamos livremente com as pessoas, sem qualquer humilhação ou violência.

Como explicar esta clara melhoria no diálogo e na fraternidade?

“Quando vemos a morte, aceitamos o mal ou a doença”, diz um dos nossos provérbios. As pessoas têm visto tanto mal nas ações do Daesh, contra o próprio Islã e o Islã pagou caro em nome destes criminosos, que há um regresso à humanidade. A visita do Santo Padre não é estranha a isto. O Papa em Mosul derrubou os preconceitos que existiam contra os cristãos. Vimos milhares de crianças, adultos, estudantes universitários, nas ruas com a bandeira do Vaticano e a bandeira do Iraque, foi muito comovente. As pessoas jogavam doces em direção ao Santo Padre, no carro dele. Ninguém se esqueceu desta visita. A cidade foi tão preparada, pavimentada e cuidada para a visita do Papa que as pessoas dizem esperar que o Papa venha todos os anos para nos incentivar a trabalhar melhor. Outros dizem que querem um presidente como o Papa para o Iraque.

Isto mudou muito as mentalidades, mesmo que no terreno ainda precisemos de solidariedade porque muitas infraestruturas foram demolidas. Apelo aos governos e às ONGs para não se esquecerem do Iraque em meio a tantos conflitos no planeta, mesmo que exista a Ucrânia, a Palestina, a Terra Santa, o Iêmen...

 Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Publicados os lemas e logotipos da viagem do Papa à Ásia e Oceania

Logotipos e lemas da viagem do Papa à Indonésia, Papua Nova Guiné, Timor Leste e Singapura (Vatican News)

Francisco estará na Indonésia, Papua Nova Guiné, Timor-Leste e Singapura de 2 a 13 de setembro. Fé, esperança, fraternidade, oração, os temas centrais.

Vatican News

Fé, oração, compaixão, fraternidade, harmonia, esperança. Estes são os temas que aparecem nos lemas e nos logotipos da viagem apostólica - o mais longo do pontificado - que o Papa Francisco fará de 2 a 13 de setembro à Indonésia, Papua Nova Guiné, Timor-Leste e Singapura. A Sala de Imprensa do Vaticano os publicou nesta quarta-feira, 8 de maio.

Indonésia

O logotipo da etapa na Indonésia tem como elemento principal a imagem do Papa Francisco abençoando em frente ao emblema da Garuda dourada, a águia sagrada, reproduzida de uma forma que lembra o tradicional tecido “batik”, com um mapa da Indonésia dentro, um arquipélago caracterizado por uma grande variedade de grupos étnicos e sociais, idiomas, culturas e crenças religiosas. À direita, abaixo do nome e do brasão do papa, estão a bandeira da Indonésia, o nome do país, a data da viagem e, enfim, o lema da visita papal: Faith × Fraternity × Compassion  (Fé - Fraternidade - Compaixão).

O logotipo e o lema da viagem à Indonésia (Vatican News)

Papua Nova Guiné

O logotipo de Papua Nova Guiné é caracterizado por três elementos: a cruz é retratada no centro com cores que lembram o nascer e o pôr do sol do país e representa o único Sacrifício que abre as portas do Céu; na cruz está desenhada a Ave do Paraíso, um elemento simbólico de Papua Nova Guiné, com as cores da bandeira nacional dentro dela; à esquerda do braço vertical da cruz está o lema da viagem apostólica: “Pray”,  (Rezar), inspirado na pergunta dos discípulos a Jesus “Senhor, ensina-nos a rezar” (Lc 11:1), com a qual os cristãos papuásios se fazem intérpretes de todo o povo ao expressar seu desejo de aprender a rezar, com a orientação do Papa.

O logotipo e o lema da viagem a Papua Nova Guiné (Vatican News)

Timor Leste

A imagem de Francisco abençoando, simbolizando a proteção que o povo timorense recebe de Deus durante a viagem apostólica, é a imagem no centro do logotipo da viagem a Timor Leste. Atrás do Pontífice está o globo terrestre, do qual emerge, em primeiro plano, o mapa físico do Timor-Leste. Acima, em um arco, está o lema da visita papal: “Que a vossa fé seja a vossa cultura”, uma exortação e um incentivo para viver a fé em harmonia com a cultura, de acordo com as tradições do povo timorense.

O logotipo e o lema da viagem a Timor Leste (Vatican News)

Singapura

Quanto ao logotipo da viagem a Singapura, ele representa uma cruz estilizada inspirada na estrela que guiou os Reis Magos, na Eucaristia e nas cinco estrelas da bandeira. À esquerda e à direita da cruz está o lema da visita papal: “Unity - Hope”  (Unidade e Esperança). “Unidade” expressa a comunhão e a harmonia entre os fiéis, tanto dentro da Igreja quanto no contexto da sociedade e das relações familiares. “Esperança” sugere que a viagem apostólica será um farol de esperança para os cristãos da região, especialmente para aqueles que são discriminados e perseguidos. As cores usadas lembram a bandeira do Estado da Cidade do Vaticano. Abaixo do lema está o nome do Papa, tendo ao lado o nome do país visitado e o ano da visita, em vermelho sobre um fundo branco, cores da bandeira de Singapura.

O logotipo e o lema da viagem a Singapura (Vatican News)

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

O caminho da libertação: do pecado à graça

O caminho da libertação (Opus Dei)

O caminho da libertação: do pecado à graça

O pecado entrou na humanidade através de um exercício errado da liberdade, mas o “faça-se em mim segundo a tua palavra” que Maria pronunciou, abriu uma nova etapa na História: o Filho de Deus desceu à terra para dar a vida em um ato supremo de liberdade, porque se originou no Amor.

01/07/2018

Depois que Adão e Eva comeram do fruto da árvore proibida, o Senhor “tendo expulsado o homem, postou a oriente do jardim do Éden os querubins, com a espada fulgurante a cintilar, para guardarem o caminho da árvore da vida”. (Gen 3,24) O drama da história humana começou: o homem e a mulher caminhariam como exilados de sua verdadeira pátria, que se caracterizava pela comunhão com Deus. Dante expressa isso lindamente no início de sua Divina Comédia: “À metade do caminho da vida, / em uma selva escura eu estava / porque o meu caminho se havia extraviado”[1]. No entanto, esta caminhada não é uma noite sem luz: o Senhor também anunciou uma esperança: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gen 3,15). A vinda de Cristo marcaria a passagem do pecado para a vida da graça.

A “culpa” original

É o conhecimento de Deus que dá origem ao sentido do pecado, e não o contrário. Nós não vamos entender o pecado original e as suas consequências, enquanto não percebermos, primeiro, a bondade de Deus ao criar o homem, assim como a grandeza do seu destino. O Catecismo da Igreja Católica afirma: “O primeiro homem não só foi criado bom, como também foi constituído num estado de amizade com o seu Criador, e de harmonia consigo mesmo e com a criação que o rodeava: amizade e harmonia tais, que só serão ultrapassadas pela glória da nova criação em Cristo”[2].

É O CONHECIMENTO DE DEUS QUE DÁ ORIGEM AO SENTIDO DO PECADO.

O pecado de Adão e Eva introduziu uma ruptura fundamental na unidade interna do ser humano. A submissão da vontade humana à Vontade divina, que era a pedra de apoio do arco das faculdades corporais e espirituais da natureza humana, foi quebrada pela desobediência a Deus. Então, ao remover o apoio, o arco inteiro desmoronou. Como consequência, “a harmonia em que se encontravam, estabelecida graças à justiça original, fica destruída; o domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo se quebra (cf. Gen 3, 7)[3]“.

Este primeiro pecado é chamado pecado original, e é transmitido, juntamente com a natureza humana, de pais para filhos, com a única exceção, por privilégio de Deus, de uma pessoa: Nossa Senhora. “Pela desobediência de um único homem, todos eles foram constituídos pecadores” (Rom 5,19), diz São Paulo. Certamente, essa realidade é difícil de entender, até um pouco escandalosa para a consciência atual: “Eu não fiz nada, por que tenho que carregar esse pecado?”

O Catecismo da Igreja Católica aborda esta questão: “É um pecado que será transmitido por propagação a toda a humanidade, isto é, pela transmissão de uma natureza humana privada de santidade e justiça originais. Portanto, o pecado original é chamado “pecado” de maneira análoga[4]: é um pecado ‘contraído’ e não ‘cometido’, um estado e não um ato”[5]. Refletindo sobre isso Ronald Knox escreveu que “evitaríamos muito trabalho se combinássemos de chamar o pecado original de culpa original. Porque o pecado, de acordo com a mentalidade do homem comum, é algo que ele mesmo comete, e a culpa é algo que pode corresponder a ele sem qualquer falta de sua parte”[6].

E é isso o que acontece com o pecado original: nossos primeiros pais pecaram e, ao fazê-lo, perderam a santidade e a justiça originais que Deus lhes havia dado e sua natureza foi “ferida em suas próprias forças naturais, submetida à ignorância, sofrimento e domínio da morte e inclinados ao pecado”[7]. E como que ninguém pode deixar como herança o que já não possui, Adão e Eva não puderam deixar-nos o que eles perderam: aquele estado de santidade e justiça original, e uma natureza sem corrupção. Eles nos transmitiram a sua natureza como ela era naquele momento: ferida pelo pecado. É por isso que Santo Agostinho escreveu: “é que deles nada podia nascer diferente deles. Realmente, a magnitude da sua falta acarretou uma sanção que alterou para pior a sua natureza: o que não passava de uma pena para os primeiros homens pecadores, tornou-se natureza para todos os seus descendentes”[8].

Assim, o pecado original é a causa do estado em que nos encontramos pela má herança recebida e, como afirma o Catecismo, “o pecado original não tem, em qualquer descendente de Adão, caráter de falta pessoal”[9]. Mas todos nós viemos ao mundo afetados pelas suas consequências: certa ignorância na inteligência, uma vida marcada pelo sofrimento, subordinados ao império da morte, a vontade inclinada ao pecado e as paixões desordenadas. Qualquer pessoa tem experiência dessa desagregação, dessa incoerência, dessa fraqueza interna.

TODOS NÓS VIEMOS AO MUNDO AFETADOS PELAS CONSEQUÊNCIAS DO PECADO ORIGINAL, QUALQUER PESSOA TEM EXPERIÊNCIA DESSA DESAGREGAÇÃO, DESSA INCOERÊNCIA, DESSA FRAQUEZA INTERNA.

Quantas vezes já nos propusemos algo que depois não fizemos: fazer uma dieta necessária para a saúde, dedicar diariamente um tempo para aprender um idioma, tratar os filhos com mais doçura, não se chatear com os pais ou cônjuge, não reclamar do trabalho, ajudar uma pessoa pobre ou doente, acompanhar com generosidade os mais vulneráveis, falar bem dos outros e alegrar-nos com os seus sucessos, olhar para o mundo e para as pessoas com um coração limpo… Sem mencionar as situações em que fazemos exatamente o que não queremos: deixamo-nos levar por uma explosão de ira injustificada, sucumbimos à preguiça em vez de servir com amor, desculpamo-nos com uma mentira para não ficar mal, cedemos à curiosidade na internet…

Experimentamos também a tirania do desejo que, buscando com veemência um bem aparente, particular e limitado (um prazer, um privilégio, o poder, a fama, o dinheiro, etc.), arrasta em sua direção uma vontade enfraquecida, e a desvia do bem íntegro e verdadeiro da pessoa (a felicidade, a vida com Deus) que deveria perseguir. Da mesma forma, a inteligência, luz para indicar o verdadeiro fim, fica obscurecida e corre o risco de se tornar um simples instrumento para obter o que uma vontade escravizada pelo desejo já tinha decidido procurar.

Mas nem tudo é amaldiçoado no ser humano, longe disso. A natureza humana não está totalmente corrompida, conserva a sua bondade essencial. Nós viemos ao mundo com as “sementes” de todas as virtudes, chamados a desenvolver-nos com a ajuda dos outros, com o exercício da nossa liberdade e com a graça de Deus. Na verdade, a virtude corresponde mais ao que verdadeiramente somos do que o pecado, porque este último é sempre um ato contra a natureza, um “ato suicida” [10]. Bento XVI o expressava assim: “Diz-se: ele mentiu, é humano. Ele roubou, é humano. Mas isso não é realmente humano. Humano é ser generoso. Humano é ser bom. Humano é ser um homem de justiça”[11].

Da escravidão à libertação

Na raiz de todo pecado está uma dúvida sobre Deus, a suspeita de que talvez não nos ame ou não possa nos fazer felizes: ‘É tão bom como diz ser? Não estará nos enganando?’. “É verdade que Deus vos disse: ‘Não comais de nenhuma das árvores do jardim?’” (Gen 3,2), diz a serpente a Eva. E quando ela responde que não é assim, que somente estão proibidos de comer da árvore que está no meio do jardim para não morrer, a serpente semeia o veneno da desconfiança em seu coração: “De modo algum morrereis. Pelo contrário, Deus sabe que, no dia em que comerdes da árvore, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal” (Gen 3,4-5). Na verdade, por trás dessa falsa promessa de liberdade infinita, de autonomia absoluta da vontade (impossíveis para uma criatura), se esconde uma grande mentira. Porque ao tentar nos virarmos sozinhos, sem nos apoiarmos em Deus, aparece o séquito do mal, que nos escraviza e nos prende porque nos impede de ser felizes com Deus.

O pecado pode aparecer porque somos livres, ele vive dessa liberdade, mas termina por matá-la. Promete muito, mas dá apenas dor. É um engano que nos converte em “escravos do pecado” (Rom 6,17). Por isso: “o mal não é uma criatura, mas se assemelha a uma planta parasita. Ele vive do que tira dos outros e no final se mata, como faz a planta parasita quando toma posse de seu hospedeiro e o aniquila”[12].

O pecado entrou na humanidade por um exercício errado da liberdade, porém o remédio para ele e o começo de uma nova vida também entraram por uma decisão livre. O “faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38), que Nossa Senhora pronunciou de uma forma totalmente livre, abre uma nova etapa na história, a plenitude dos tempos.

Assim, o Filho de Deus desceu à terra para entregar a sua vida em um ato supremo de liberdade, por estar originado no amor: “Meu Pai, se possível, que este cálice passe de mim. Contudo, não seja feito como eu quero, mas como tu queres” (Mt 26,39). E agora isso nos eleva, para que possamos responder – porque queremos de verdade – a esse convite para viver a “gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rom 8:21).

É justamente com a nossa liberdade de filhos de Deus que podemos voltar a deixar-nos olhar e curar pelo Senhor, dirigindo-nos com humildade a Ele, que nos renova interiormente com a sua graça. Aprendemos assim que “a vontade de Deus não é uma lei imposta de fora para o homem, que o obriga, mas a medida intrínseca de sua natureza, uma medida que está inscrita nele e faz dele uma imagem de Deus, e assim, uma criatura livre”[13]. Na verdade, Deus é o fiador da nossa liberdade. É livre quem se deixa amar por Deus, quem não desconfia, quem acredita no seu Amor. Com a fé desaparecem os limites impostos pela dúvida, falsidade, cegueira e a falta de sentido. Com a esperança, derrubam-se o medo, o desânimo, a inquietação e a culpa que nos infernizam. Com a caridade, deixamos para trás o egoísmo, a ganância, a autorreferência, as frustrações e a amargura que reduzem a medida da nossa vida.

A graça de Deus

A RESPOSTA DE DEUS A NOSSOS PECADOS É A ENCARNAÇÃO E REDENÇÃO DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

São João Paulo II escreveu em seu último livro que “a redenção é o limite divino imposto ao mal pela simples razão de que nele o mal é radicalmente derrotado para sempre pelo bem, o ódio pelo amor, a morte pela ressurreição”[14]. A resposta de Deus a nossos pecados é a Encarnação e Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo. “Jesus Cristo foi entregue pelos nossos pecados” (Rom 4:25), afirma São Paulo. Ele nos reconcilia com Deus, nos liberta da escravidão do pecado e nos concede o dom da graça: “um dom gratuito de Deus, pelo qual Ele nos faz participantes em sua vida Trinitária e capaz de agir por amor a Ele”[15]. Nós não devemos nos acostumar com esta realidade: a graça é um dom imerecido, uma participação na vida divina, introduz-nos na intimidade amorosa de Deus e nos torna capazes de agir de uma nova maneira: como filhos de Deus.

A graça é muito mais abundante do que o pecado: “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rom 5,20). E muito mais forte. Em um famoso romance literário, a protagonista vai ao confessionário e, uma vez lá, manifesta seu pecado qualificando-o como muito grave. A resposta que ele ouve do confessor é esta: “Não, minha filha” – dizia com calma e quase friamente –, “você não ofendeu a Deus mais gravemente do que uma infinidade de pessoas: seja humilde mesmo na confissão de seu pecado! Grande, em sua vida, foi apenas a Graça. Somente a Graça é sempre grande. O pecado em si, seu próprio pecado, é pequeno e comum”[16]. Por isso São Josemaria podia afirmar: “Nosso Pai do Céu perdoa qualquer ofensa quando o filho volta de novo para Ele, quando se arrepende e pede perdão. Nosso Senhor é de tal modo Pai, que prevê os nossos desejos de sermos perdoados e a eles se antecipa, abrindo-nos os braços com a sua graça”[17]. Uma graça que nos é concedida abundantemente na oração e nos sacramentos. E que é recuperada no sacramento da Penitência[18] se a perdemos pelo pecado grave.

Um dos hinos da Liturgia das Horas diz: “Cura, Senhor, com o orvalho da tua graça, as feridas da nossa alma doente, para que, sufocando os maus desejos, deplore seus pecados com lágrimas”[19]. A Graça cura as feridas de pecado em nossa alma: identifica a vontade humana com a Vontade Divina por meio do amor de Deus, ilumina a inteligência através da fé, ordena paixões ao verdadeiro fim do homem e sujeito à razão, etc. Em uma palavra: é o remédio de todo o nosso ser. Resumindo: “Nada é melhor no mundo do que estar em graça de Deus”[20].

Talvez algumas pessoas se perguntem: “Se a graça de Deus é tão poderosa, por que não tem efeitos mais decisivos sobre as pessoas?”. Outra vez tropeçamos com o mistério da liberdade humana. A graça “previne, prepara e desperta a livre resposta do homem”[21], mas não força essa liberdade. “Quem te criou sem ti não te salvará sem ti”[22], sentenciou Santo Agostinho. Temos à nossa disposição uma usina nuclear com milhares de megawatts, mas temos que conectar a rede da nossa casa, se quisermos que essa energia nos ilumine, aqueça e sirva de proveito. Temos que receber a graça com humildade, gratidão e arrependimento dos nossos pecados e lutar com amor para seguir humildemente os seus impulsos. Sem nunca perder de vista, como o Papa Francisco nos lembra, que “essa luta é muito bonita, porque nos permite celebrar cada vez que o Senhor vence em nossa vida”[23]. Vamos evitar assim, todos os sinais de voluntarismo, conscientes da absoluta prioridade da graça na nossa vida.

"DEUS IRROMPEU NA HISTÓRIA DE UMA FORMA MUITO MAIS SUAVE DO QUE GOSTARÍAMOS. MAS ESSA É A RESPOSTA PARA A LIBERDADE" (CARD. RATZINGER).

Mas acontece que, além disso, “nesta vida as fraquezas humanas não são curadas completamente e definitivamente pela graça”[24]. “A graça, justamente porque supõe a nossa natureza, não nos transforma de repente em super-homens. Pretender isso seria confiar demais em nós mesmos (...). Porque se não notarmos nossa realidade concreta e limitada, não poderemos ver os passos reais e possíveis que o Senhor nos pede a cada momento, depois de nos ter capacitado e cativado com seu dom. A graça atua historicamente e, normalmente, nos toma e nos transforma de forma progressiva. Portanto, se rejeitamos esta maneira histórica e progressiva, de fato, podemos chegar a negá-la e bloqueá-la, ainda que a exaltemos com nossas palavras”[25]. Deus é delicado e respeitoso conosco. Assim refletia o cardeal Ratzinger certa vez: “Creio que Deus irrompeu na história de uma forma muito mais suave do que gostaríamos. Mas essa é a resposta para a liberdade. E se queremos e aprovamos que Deus respeite a liberdade, devemos respeitar e amar a suavidade das suas mãos”[26], que é o mesmo que amar a suavidade de sua graça.

José Brage
Tradução: Mônica Diez

Bibliografia sobre o pecado e a graça
Leituras recomendadas:

- Catecismo da Igreja Católica nºs 374-421 1846-1876 e 1987-2029.

- Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, nºs. 72-78 e 422-428.

- São João Paulo II, Exort. Ap. Reconciliação e Penitência (2-XII-1984).

- Concilio Vaticano II, Constituição pastoral “Gaudium et spes” (7-XII-1965), nºs. 13 e 37.

- Bento XVI, Homilia (8-XII-2005); Discurso aos alunos do Colégio Universitário Santa Maria de Twickenham, Londres, 17-IX-2010; Encontro com os párocos da diocese de Roma, 18 de fevereiro de 2010.

- Francisco, ex. Ap. Gaudete et exultate (19-III-2018), nºs. 47-62 e 158- 165. Palavras na visita a Auschwitz, 29 de agosto de 2016. Palavras da janela da sede da Arquidiocese de Cracóvia.

* * *

- Joseph Ratzinger, Criação e pecado; Deus e o mundo, pag. 106-130: “Sobre a criação”.

- Santo Agostinho, A Cidade de Deus, Livros XIII y XIV: “A morte como pena do pecado” e “O pecado e as paixões”.

- Santiago Sanz, A elevação sobrenatural e o pecado original em Resumos dos ensinamentos Católicos”, tema 7 (www.opusdei.org.br).

- Juan Luis Lorda, Antropología teológica, EUNSA, Barañáin 2009, pag. 287-438.

* * *

- Ronald Knox, A torrente oculta.

-Thomas Merton, A montanha dos sete patamares.

- Dante Alighieri, Adivina comédia.

- Evelyn Waugh, O retorno a Brideshead.


[1] DANTE ALIGHIERI, Divina comedia, Inferno, Canto I, 1-3.

[2] Catecismo da Igreja Católica, nº 375.

[3] Catecismo da Igreja Católica, nº 400.

[4] Convém aqui entender bem o conceito de analogia: é a relação de semelhança entre coisas diferentes. Aplicado ao nosso caso: A queda original tem semelhança com o pecado, mas é diferente do pecado original.

[5] Catecismo da Igreja Católica, nº 404.

[6] KNOX, R., A torrente oculta.

[7] Catecismo da Igreja Católica, nº 405.

[8] SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, Livro XIII, III, 1.

[9] Catecismo da Igreja Católica, nº 405.

[10] SÃO JOÃO PAULO II, Exort. Ap. Reconciliação e Penitência (2-XII-1984), nº 15.

[11] BENTO XVI, Encontro com os párocos da diocese de Roma, 18-II-2010.

[12] RATZINGER, J., Dios y el mundo, Galaxia Gutemberg, Barcelona 2002, p. 120.

[13] BENTO XVI, Homilia, 8-XII-2005.

[14] SÃO JOÃO PAULO II, Memória e Identidade, 2004 nº 15.

[15] Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, nº 423.

[16] LE FORT, G. Von, El velo de Verónica, Encuentro, Madrid 1998, p. 314.

[17] SÃO JOSEMARIA, É Cristo que passa, nº 64.

[18] Cfr. Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, nº 310.

[19] Hino latino de Vésperas da terça-feira da XXV semana do Tempo Comum.

[20] SÃO JOSEMARIA, Caminho, nº 286.

[21] Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, nº 425.

[22] Sermão 169, 13.

[23] FRANCISCO, Ex. Ap. Gaudete et exultate (19-III-2018), nº. 158.

[24] Ibidem, nº 49.

[25]Ibidem, nº 50.

[26] RATZINGER, J., O sal da terra.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br

OS MÁRTIRES E O CAMINHO NEOCATECUMENAL: PALOMERAS FOI “REGADA COM O SANGUE DOS SANTOS”

Kiko e Carmen nas barracas de Palomeras, em Madrid, com o arcebispo Casimiro Morcillo (neocatechumenaleiter)

OS MÁRTIRES E O CAMINHO NEOCATECUMENAL: PALOMERAS FOI “REGADA COM O SANGUE DOS SANTOS”

POST 9 DE MARÇO DE 2024 C. N. BRASIL

O caminho Neocatecumenal nasceu em Madri em 1964, no mesmo ano em que a Diocese de Madri foi elevada a Arquidiocese por São Paulo VI, com Monsenhor Casimiro Morcillo a frente, em plena realização do Concílio Vaticano II, do qual Dom Casimiro foi participante.

Conforme se sabe, Kiko Argüello (1939-) e a Serva de Deus Carmen Hernández (1930-2016) foram seus co-iniciadores. O próprio Kiko se referiu as origens desta realidade eclesial na primeira entrevista concedida à televisão, onde falou abertamente de coisas muito interessantes que seguem vigentes.

Foram várias as ocasiões nas quais ReL falou da relação desta realidade eclesial com os mártires, como por exemplo quando fez-se referência no dia do XX aniversário dos Mártires de Ruanda.

Também se destacou, em 2020, o caso de Marta Obregón, divulgando-se a informação em 2023, ano em que também se deu a notícia da estreia da segunda sinfonia composta por Kiko, O Messias, precisamente dedicada os mártires.

Mais que recomendado é escutar o discurso que deu o compositor depois da interpretação – o próprio Kiko, acompanhado pelo Padre Mario Pezzi e Ascensión Romero, todos membros da atual Equipe Internacional Responsável pelo Caminho Neocatecumenal – em que explicou o sentido e a validade que tem, hoje, o espírito de mártir.

Kiko e Carmen nas barracas de Palomeras, em Madrid, com o arcebispo Casimiro Morcill (neocatechumenaleiter)

De igual modo pode-se destacar como informação sobre a relação do Caminho com os mártires tudo o que foi publicado em ReL sobre a primeira sinfonia composta por Kiko e
intitulada ‘O Sofrimento dos Inocentes’, já que está dedicada à Virgem Maria, primeira mártir e inspiradora do nascimento desta realidade eclesial, que disse a Kiko, há 65 anos, no dia da Imaculada:

“Há que fazer comunidades cristãs como a Sagrada Família de Nazaré, que vivam em humildade, simplicidade e louvor. O outro é Cristo.”

De igual modo, qualquer um que conheça o significado do termo “martírio espiritual” pode facilmente perceber, ao ler os Diários 1979-1981 – diretamente relacionados com o desenvolvimento do Caminho Neocatecumenal – que a Serva de Deus Carmen Hernández sofreu com isso durante longos períodos de sua vida.

Foi o próprio Kiko que relacionou os mártires com o nascimento do Caminho Neocatecumenal expressando-o da seguinte maneira:

“Espanha deu Cursilhos de Cristianismo, o Opus Dei, o Caminho Neocatecumenal e tudo que você quiser. Sabe por quê? Porque houve uma Guerra Civil Espanhola onde mais de 6.000 padres foram mortos, torturados, martirizados: não houve uma única apostasia. As raízes do Caminho Neocatecumenal estão banhadas no sangue de muitos mártires da Espanha.”


Certamente não podemos deixar de lembrar que em 2022 a Associação Católica de Propagandistas – com um número significativo de mártires nas suas fileiras – lançou uma campanha publicitária para dar a conhecer à sociedade espanhola a realidade dos mártires espanhóis relacionados à Guerra Civil.

Nesta campanha se destacava sem rodeios que a Espanha era o país em que mais gente morreu perdoando seus algozes, assassinos na realidade, posto que as execuções se realizavam sem nenhum julgamento. Esta campanha foi contestada ideologicamente, mas não rebatida em relação ás cifras.

Disso e junto com os dados de que hoje dispomos – fundamentalmente, graças aos precisos cômputos realizados pelo maior expert em vítimas da Frente Popular em Madri, Jose Manuel Ezpeleta – podia-se deduzir diretamente que Madri é a cidade no mundo em que mais pessoas morreram perdoando seus assassinos, já que é a primeiro em número de martirizados.

Palomeras – Terra Dos Mártires

Precisamente, o lugar onde estão enterrados mais assassinados em processo de beatificação é o Campo Santo dos Mártires de Paracuellos del Jarama, município do província de Madrid, em cuja capital nasceu o Caminho Neocatecumenal, mais especificamente nos barracos que foram assentados em 1964, em
um lugar chamado Palomeras.


Palomeras, além dos pequenos pombais, é o nome (em espanhol) dado às redes para caçar pombos que ainda hoje se utilizam em alguns lugares da Espanha. Pode ter sido essa a origem do nome de Palomeras de Madri, já que o lugar se localiza na linha migratória dos pombas-torcazes, onde podiam fazer uma pausa para se recuperar do esforço da travessia da Serra de Guadarrama em direção ao sul, ou um
recesso para ganhar força para seguir em direção ao norte.

A Real Academia Espanhola também admite que “Palomeras” é um pântano (charneca) de curta extensão, algo que em princípio também concordaria com a área original de Palomeras. Seja como for, Palomeras foi o nome que recebeu um local situado a sudoeste da vila de Vallecas, hoje bairro de Madri.


No mapa de Rafael de Aro y Villar, de 1755, que apresentamos a seguir, observa-se que dito lugar ocupava um terreno que, com o passar do tempo, as subdivisões urbanas, etc., incluiriam hoje dia não só o terreno da colônia das favelas de Palomeras onde viveram Kiko Argüello e a Serva de Deus Carmen Hernández e surgiu a primeira comunidade neocatecumenal do mundo cujo responsável foi José Agudo, falecido recentemente, mas também os atuais bairros de Pozo del Tío Raimundo e Santa Cecília, entre outros.


Resulta que esta área de Palomeras, além de ver o nascimento do Caminho Neocatecumenal, em 1964, foi, antes, testemunha do maior fuzilamento público ocorrido durante a Guerra Civil Espanhola, na qual morreu pela fé um número ainda indeterminado de irmãos, alguns dos quais já estão em caminho da santidade.

A área sul ocidental de Vallecas, até o rio Manzanares, se chamou Palomeras, e figura em um mapa de Rafael de Aro y Villar, de 1755. Terminou incluindo tanto Santa Cecilia e El Pozo del Tío Raimundo como as Palomeras Altas, Bajas, etc. (Religión en Libertad)

Estou falando dos episódios conhecidos como os Trens da Morte, em que havia dois comboios que chegavam a Madrid cheios de prisioneiros do sul da Espanha, principalmente de Jaén, com o objetivo de descongestionar o que então funcionava como Prisão Popular, a Catedral de Jaén, à qual o Exército da Frente Popular mantinha detidos pessoas que considerava perigosas, todos eles simples civis desarmados.

A ideia era levar uma parte destes presos para a prisão menos congestionada de Alcalá de Henares. Existem muitos estudos excelentes sobre o que ocorreu nesses episódios. Santiago Mata é provavelmente quem mais aprofundou no tema, tanto em seu livro intitulado O Trem da morte, como em menor medida em Holocausto católico.

(Crédito: Religión en Libertad)

Para destacar no mesmo sentido, o mais que interessante relato de uma testemunha ocular dos fatos, Ignacio de Valenzuela y Urzáiz, sobrevivente da tragédia por se passar por um francês, que deixou relatado tudo o que viu em sua obra El tren de Jaén, cujo manuscrito foi encontrado fortuitamente por uma neta depois do falecimento dele, e que foi publicado há pouco tempo com o aval da presença no ato de quem, sem dúvida, melhor conhece o vitimário de Madri na época e mencionado anteriormente, José Manuel Ezpeleta, que o recomendou a mim especialmente como o relato mais calmo e detalhado daquela barbárie.

(Crédito: Religión en Libertad)

Os relatos que esses autores fazem dos fatos ocorridos aparecem resumidos com maestria e com comentários precisos em um artigo de Luis E. Togores que recomendo ler aqui . O autor indica com rotundidade que entre os transferidos nos trens não havia militares ou civis diretamente ligados ao golpe de Estado, mas sim pessoas identificadas pelos municípios de Jaén por serem de direita ou católicos
praticantes.
O primeiro dos trens partiu em 11 de agosto de 1936, com 322 presos. Ao longo de todo o percurso ele sofreu várias tentativas de assalto para assassinar os passageiros. Este objetivo só foi alcançado com 11 pessoas, duas das quais já são beatificados.

Trata-se das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo: Irmã Juana Pérez Abascal, 49 anos, e Irmã Ramona Cao Fernández, com 52. Segundo o biografia publicada por María Ángeles Infante Barrera, eram enfermeiras que exerciam suas atividades no Sanatório Antituberculose de El Neveral, do qual foram expulsas com as demais irmãs e que posteriormente foram presas e acusados de roubo, e como não foram encontradas provas do delito, escaparam da morte certa.

(Crédito: Religión en Libertad)

Como não encontraram uma maneira de permanecer ali, tiveram a ideia de se mudar para Madri, vestidas como enfermeiras da Cruz Vermelha, mas com seu rosário das Filhas da Caridade debaixo do uniforme, embarcando no trem no qual iam os presos, quando finalmente foi conhecida a sua condição de religiosas.
Tendo o trem chegado à região próxima onde depois Kiko e Carmen viveriam, em Palomeras, a um quilômetro aproximadamente em linha reta onde esteve o povoado das favelas onde nasceu o Caminho Neocatecumenal, foi parado e onze pessoas saíram dele e foram assassinadas, entre as quais estavam estas Filhas da Caridade.
Bento XVI assinou, em 20 de dezembro de 2012,, o decreto de reconhecimento de martírio da Serva de Deus Melchora Cortés Bueno e companheiras, Irmã Juana e Irmã Ramona incluídas. Foram 27 as Filhas da Caridade assassinadas na Espanha na época.
Todavia, no dia seguinte a matança foi muito superior, e os detalhes são conhecidos com maior precisão. No dia 12 de agosto, ao chegar o segundo trem na Estação de Santa Cecília – a mártir (coincidências da vida) da qual havia uma pintura importante no templo vizinho dedicado a San Pedro Ad vincula, ainda em pé, e provavelmente alguma devoção na área – então em operação, o trem foi parado por soldados do Exército da Frente Popular, e imediatamente eles o desengancharam da locomotiva.
Segundo assinala Togores, falaram por telefone com o Diretor Geral de Segurança, Manuel Muñoz Martínez, informando-lhe que haviam parado o trem e que três metralhadoras estavam apontadas para ele. Manuel Muñoz ordenou aos guardas civis que custodiavam os presos que os abandonassem à própria sorte, alegando que “a pouca autoridade que o governo ainda tinha entraria em colapso se as escassas forças da ordem pública acabassem sendo esmagadas em um confronto com o povo
armado”.
Os 245 prisioneiros escoltados por 50 guardas civis sob as ordens do Alferes Manuel Hormigo Montero compunham a expedição em direção a Alcalá, mas neste segundo trem, as tropas da Frente Popular foram avisadas e agiram com a barbárie que sempre os caracterizou em Madri. Logo que os guardas civis se afastaram, começou a matança, presenciada por milhares de pessoas das redondezas que se aproximaram para ver o espetáculo.

O que aconteceu, segundo declarou o sobrevivente Andrés Portillo Ruiz sob juramento na Causa Geral, foi o seguinte:

“Então como já estávamos sob o poder dos vermelhos, estes puseram o trem em marcha em direção a Alcalá de Henares, passando nesta linha pela Estação de Santa Catalina, onde há um lugar que se chama ‘POZO DEL TIO RAIMUNDO’, onde o trem parou, fazendo descer os detidos pela frente do trem de 10 em 10, mas não antes de lhes tirar tudo o que o que consideravam de valor…”

A Causa Geral continua:

“Cerca de trezentos detentos vinham de Jaén, imprensados no trem. Próximo de Madri, em Villaverde, os milicianos do vilarejo os capturaram, apesar dos quarenta guardas civis encarregados de sua proteção, e iniciaram o mais feroz e desumano pelotão de fuzilamento em grupos de vinte e cinco, sem qualquer investigação sobre suas pessoas ou crimes. Há cenas tristes de pais testemunhando a morte de seus filhos e vice-versa. O bispo de Jaén, Sua Excelência Dom Manuel Basulto, cai de joelhos, exclamando:

– Perdoe, Senhor, meus pecados e perdoe também meus assassinos.

– Isso é uma infâmia- exclama sua irmã Teresa – eu sou uma pobre mulher.

– Não se preocupe – responderam à ela- uma mulher vai matá-la.

Então, uma miliciana desgrenhada chamada Josefa Coso “La Pecosa” se aproximou e a matou no local a sangue frio. Quando ainda faltavam cerca de quarenta prisioneiros, Leocadio, um jovem de 19 anos, aproximou-se do grupo e, confrontando o líder da milícia, disse-lhe que responderia com a própria vida por todos os que estavam no grupo restante (…) O feroz comandante suspendeu as execuções, ameaçando-o: “Ai de você, se me enganar! Leve-os para Vallecas e deixe-os provar sua inocência”.

Mas a história completa de acordo com o a documentação existente é a seguinte:

“O trem foi desviado de seu trajeto até Madri e levado por uma via de circunvalação ou ramal até às proximidades do lugar já mencionado do Pozo del Tío Raimundo. Rapidamente, os criminosos começaram a fazer descer do trem grupos de prisioneiros, que foram colocados ao lado de um aterro e diante de três metralhadoras, sendo assassinado o Excelentíssimo e Ilustrísimo Sr. Bispo e o Vigário Geral
Dom Félix Pérez Portela. A irmã do Sr. Bispo, que era a única mulher na expedição, chamada Dona Teresa Basulto Jiménez, foi assassinada individualmente por uma miliciana que se ofereceu para fazê-lo,
chamada Josefa Coso ‘La Pecosa ‘, que disparou sua pistola contra a citada senhora, causando a sua morte; continuando a matança indiscriminada do resto dos detidos, sendo este espetáculo presenciado por cerca de duas mil pessoas, enquanto um grande número de pessoas observava o espetáculo com alegria ruidosa. Esses assassinatos, que começaram nas primeiras horas de manhã do dia 12 de agosto de 1936, foram seguidos do despojo dos cadáveres das vítimas, realizado pela multidão e pelas milícias, que se apoderaram de quaisquer objetos que tivessem algum valor, cometendo atos de profanação e escárnio e levando parte do resultado do saque às instalações do Comitê de Sangue de Vallecas, cujos dirigentes foram, com outros, os maiores responsáveis pelo crime relatado. (Cópia literal do Livro: La Causa General. Páginas 177-178)”.

E foi assim que, em 12 de agosto, 193 dos prisioneiros que o trem transportava foram assassinados, incluindo o bispo de Jaén, Manuel Basulto Jiménez – o único bispo assassinado em Madri – com sua irmã, o marido dela e o vigário geral da diocese de Jaén, Félix Pérez Portela.

O bispo de Jaén, Manuel Basulto Jiménez, de 67 anos, e seu vigário Félix Pérez Portela, de 41. Basulto, que era bispo de Lugo desde 1910 e bispo de Jaén desde 1920, demonstrou sua disposição para o martírio assim que deixou a Catedral de Jaén. Pouco antes de sua morte, ele cruzou os braços sobre o peito e se ajoelhou.

Lugar exato da matança (Ao oeste da linha de trem, ou seja, no lado em direção a Villaverde, mas dentro do término municipal de Vallecas e da parada originária de Palomeras). | Religión en Libertad

O último sobrevivente do massacre ainda vivo, Leocadio Moreno, o Leocadio mencionado anteriormente no relato da Causa Geral, sempre se lembrou vividamente do “gesto de pastor” do vigário geral, quando lhe pediu absolvição antes de seu previsível fuzilamento – que não ocorreu – e Portela lha deu, antes de escapar dos milicianos que o puxavam para fora do vagão do trem. Santiago Mata conseguiu localizar o local exato dos assassinatos.

O segundo trem partiu de Jaén em 12 de agosto. Dessa vez, o trem evitou passar por Atocha para evitar que os prisioneiros caíssem nas mãos de Villalba Corrales e seus milicianos. Todas as vítimas foram enterradas em duas trincheiras abertas ao lado dos muros do cemitério de Vallecas. Togores indica que, na década de 1940, seus restos mortais foram transferidos para a cripta da Igreja do Sagrario na Catedral de Jaén. 

Na catedral de Jaén há várias lápides de mármore com quase todos os nomes dos assassinados. Seus assassinos não foram processados nem condenados por esses crimes pelas autoridades da Frente Popular em nenhum momento. Quando o governador civil de Jaén descobriu o que havia acontecido, devastado pelos assassinatos, ele renunciou.

Os 40 sobreviventes do massacre de Palomeras foram parar no Cárcel Modelo, em Madri. Muitos deles seriam mortos algumas semanas depois em Paracuellos del Jarama.

Aspecto que tem a área do campo de mártires de Palomeras na atualidade (Religión en Libertad)

A Igreja Católica testemunha a autenticidade da afirmação de Tertuliano Sanguis martyrum semen christianorum. Esse tem sido o caso ao longo de sua história, e continua sendo nos últimos tempos. O caso das origens do Caminho Neocatecumenal em Madri e de outras realidades eclesiais, tanto em Madri como em outras cidades do mundo, como Roma, é mais um deles.

Nesse sentido, é surpreendente que em pelo menos dois outros campos de mártires da capital espanhola, nos cemitérios de Hortaleza e Canillas e no cemitério de Almudena, tenham surgido, com o tempo, comunidades neocatecumenais nas paróquias de Nuestra Señora del Tránsito e Santas Perpetua y Felicidad e San Emilio, respectivamente. Anos mais tarde, o Caminho Neocatecumenal começaria a se desenvolver em Roma, uma cidade regada pelo sangue dos Santos Pedro e Paulo e de tantos outros.

Espero que essa curiosa coincidência, até então não descrita, sirva como um presente para todos aqueles que estão celebrando o 60º aniversário do Caminho Neocatecumenal.

*Matéria publicada no site do Religión en Libertad, em 22 de fevereiro de 2024. Autor: Alfonso V. Carrascosa. Para ler a matéria original, em espanhol, clique aqui.

Fonte: https://cn.org.br/

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF