'Se seus filhos têm celular, quem manda neles são as redes sociais', diz pediatra Daniel Becker
31 agosto 2024
BBC News Brasil - Muitos educadores dizem que birra não
existe. O que o senhor acha?
Becker - A gente chama de birra, mas acho que
tem nomes mais apropriados. Seria uma crise de irritabilidade e está
essencialmente ligada ao momento de desenvolvimento daquela criança.
Com cerca de 1 ano e meio, ela começa a dominar todas as
capacidades de um ser adulto para a interação social. Começa a falar, a
entender, a se movimentar, a alcançar as coisas, a desenvolver autonomia. E é
por isso que quer fazer só o que ela quer, não vai aceitar ordens.
Qualquer coisa que venha contrariar seus desejos vai gerar
uma briga e ela vai ficar irritada, porque não tem noção de controle de
impulso. Se ficar chateada, aquela chateação vai dominá-la completamente. Ela
vai chorar, se jogar no chão, vai bater.
As pessoas ficam ofendidas quando isso acontece, dizem
"meu filho me bateu". Isso é um absurdo. São crianças que estão
aprendendo as noções de sociabilidade e que não têm a menor noção das relações
sociais. Não sabem o que significa um tapa ou se jogar no chão. Isso é
adrenalina que está circulando ali dentro, e a criança precisa de movimento.
Isso é parte do desenvolvimento necessário e natural de toda criança.
BBC News Brasil - Até que idade isso é normal?
Becker - Até os 4 anos. Se passar muito disso,
já é preciso ter um olhar mais cuidadoso. Com 4 anos, existe um salto de
desenvolvimento em que a criança fica com mais inteligência, mais
discernimento, mais capaz de compreender as regras sociais, ela fica com uma
certa malícia, começa a entender piadinhas, ironias e brincadeiras.
É um momento delicioso de desenvolvimento. Os 4 anos são a
minha idade preferida, porque a criança brinca contigo, sorri, entende a
maldade, vira uma palhaçada, entende a piada.
A gente precisa entender que isso é parte do desenvolvimento
e ter um pouco de paciência. Isso passa. Brigar, castigar, dar tapas nessa hora
vai piorar e ainda gerar consequências muito negativas no futuro.
O momento da birra pode ser uma oportunidade educativa para
a criança, porque é uma explosão emocional. Não adianta você fazer discurso
nesse momento. É ridículo dizer para a criança que ela deve ir para o cantinho
do pensamento, isso não funciona. Você acha que ela vai pensar sobre o que fez?
Nessa hora, é preciso acolher, acalmar, respirar junto. É o
que a gente chama de corregulação. No meio da birra, o que a criança precisa é
de um abraço, de ser contida. Respire junto com ela.
Uma coisa legal é ensinar a respiração do "cheira a
florzinha, assopra a velinha" antes da crise. Na hora da crise, você faz
com ela. Essa respiração é mágica, porque respirar fundo e expirar soprando tem
um efeito calmante no cérebro. É um gesto que traz alívio.
Você pode usar esse momento para mostrar o que sente. Acolha
os sentimentos, dê legitimidade a ela. Todo sentimento é legítimo. O que a
gente não deve legitimar é a reação inadequada a um sentimento. Qualquer emoção
é válida, e ninguém pode deixar de sentir uma emoção porque quer.
Acolha a emoção, diga: "Olha, você pode estar com
raiva, eu também fico com raiva. Mas você não pode bater em mim. Aqui em casa,
a gente não bate em ninguém".
BBC News Brasil - A Assembleia Legislativa de São Paulo
está debatendo um projeto de lei para proibir o uso de celular nas escolas.
Como estabelecer uma relação minimamente saudável dos jovens com o celular?
Becker - A tecnologia ocupa uma parte da nossa
vida, e as crianças não vão ficar fora disso.
O problema é: a partir de que idade a criança tem que ter
contato com uma tela digital? A partir de que idade ela tem que ter um celular
ou estar em uma rede social? Essa é uma discussão muito relevante.
Existem tecnologias que são apropriadas e outras não, porque
vão trazer riscos altíssimos para o desenvolvimento. A gente sabe que qualquer
tela vai trazer prejuízos para uma criança pequena. Por isso, especialistas
insistem que até 1 ano e meio, 2 anos, a criança não tenha acesso à tela. Isso
não quer dizer que, se a mãe estiver amamentando um bebê de 6 meses enquanto
assiste à novela, isso vai ser um problema. Não é isso.
Agora, uma mãe não deve
ficar no celular enquanto amamenta, por exemplo, porque as redes
sociais têm um algoritmo que determina o que vamos assistir, que geralmente é
lixo viciante. Pode acontecer da criança se distrair também e ficar assistindo.
Às vezes, acontece até de a criança morder o peito da mãe sem querer, devido a
um estímulo vindo do celular.
Depois dos 2 anos, até uns 5 anos, você pode permitir o uso
de tela, de preferência da televisão, porque você escolhe o que vai passar ali
e, de preferência, com interação com um adulto. Até os 5 anos, você pode
estabelecer uma hora e meia por dia de televisão.
Depois, dos 5 aos 10 anos, dá para flexibilizar um pouco.
Mas ter um telefone celular, com acesso à internet, aos 8 anos, é escandaloso.
É um erro muito absurdo e vai custar muito caro para a família depois. Quanto
mais cedo a criança tiver o celular, mais nocividade ela vai sofrer. Maior
tendência à depressão, ansiedade, pânico e até problemas graves de vício.
Uma criança com 8 anos não tem discernimento para distinguir
um golpista de um amigo, um pedófilo de um professor. O crime mudou para a
internet, e ele não está só nas redes sociais, está no WhatsApp também.
Por isso, a recomendação é não entregar um celular nas mãos
da criança antes do fim do ensino fundamental. E não deixar que elas entrem em
redes sociais antes dos 15, 16 anos. As redes sociais são um mundo de horror
que se abre para a criança.
A ansiedade no Brasil, de 2013 para cá, aumentou 1500% na
adolescência, segundo pesquisa do Datafolha feita com dados da atenção
psicossocial do SUS [Sistema Único de Saúde].
É escandaloso. Superou o atendimento de adultos em número
absolutos. E o que aconteceu de 2013 para cá? Teve a pandemia, mas ali só foi
registrada uma leve oscilação. O problema começou em 2010, 2012, quando todo
mundo começa a ter celular, redes sociais.
A escola é um lugar absolutamente estratégico hoje em dia,
porque é regulamentada. É onde ainda é possível aplicar regras. As famílias não
conseguem aplicar regras, porque ninguém consegue vencer a Meta [dona do
Instagram, Facebook e WhatsApp] ou a ByteDance [dona do Tik Tok]. Quem manda
nos seus filhos hoje, se eles têm celular, são essas empresas.
Por isso, tem que proibir o uso de celular não só na sala de
aula, como também no recreio, que é o último reduto do brincar hoje. Brincar é
a coisa mais importante da infância. Uma infância que não brinca gera adultos
estúpidos, infelizes, deprimidos, violentos e intolerantes.
O recreio é precioso e não pode ser com celular. A escola
tem que ser uma pausa dessa invasão do digital ao mundo real. É celular zero,
da entrada até a saída.
BBC News Brasil - Nessa era de cyberbullying,
quais sinais a família precisa ficar atenta para saber se seu filho está
sofrendo esse tipo de crime? E, por outro lado, o que fazer quando quem pratica
o bullying é o seu filho?
Becker - A criança que sofre bullying não
conta para ninguém, porque a humilhação é tão terrível. Ela se sente tão mal
que tem vergonha do que ela está passando, de ser quem ela é, de ser tão fraca,
de não conseguir reagir. Ela não vai contar para os pais, porque tem medo que
reajam mal.
É preciso prestar atenção em quem são as vítimas
preferenciais. Os tímidos, os mais nerds, os diferentões, o gorducho ou o
magrelo, o cara que usa óculos fundo de garrafa, ou o que é atípico, o que não
joga bola bem, o negro em uma escola branca.
Os mais novos da turma são vítimas preferenciais também,
porque eles têm menos malícia e menos inteligência social para enfrentar essa
malícia.
[Fique atento] Se o seu filho começa a dar qualquer sinal de
que não está legal, seja porque ele chega da escola triste, inventa doença, faz
cara triste para ir para a escola, está desanimado na hora de sair.
Ou a escola está reportando que ele não quis participar de
alguma aula de educação física, que no recreio ele está sozinho. A escola
geralmente não informa isso, mas esse é um sinal clássico.
Ele também deixa de conversar com a família, fica mais
arredio, dentro do quarto jogando e deixando de sair com os amigos de fora da
escola. São sinais claros de que algo não está bem, e você tem de conversar com
ele de forma sutil.
Vá fazer um programa que ele goste, chame para passear. Tem
vários filmes hoje sobre bullying — assista um com ele,
converse depois sobre isso. São algumas das formas de conseguir chegar nessa
criança.
Bullying é hoje um crime tipificado por lei, com
consequências para quem pratica, para os responsáveis pela criança e para a
escola. A escola que não toma providências pode ser responsabilizada
judicialmente.
Existem muitas estratégias hoje em dia. Tem que ter educador
preparado, fazer capacitação para enfrentamento de bullying. Sempre
recomendo devolver isso para a turma em que o bullying ocorreu,
questionando como resolver isso.
Aí, eles pesquisam, fazem debates, fazem roda de conversa,
acolhem esses dois lados. Porque o agressor muitas vezes tem que ser acolhido
também, ele está sofrendo em casa, muitas vezes.
A escola tem que ter política de prevenção de bullying,
que começa com educação antirracista, inclusiva, cultura africana. Tem que ter
a educação ambiental, socioemocional, tem que ter espaços de acolhimento para
quem está sofrendo, tem que identificar meninos e meninas isolados, tem que ter
tutores para essas crianças, um espaço de privacidade onde a criança possa
contar para alguém o que está acontecendo com ela.
Em relação a quem está praticando bullying, essa
criança está geralmente sofrendo também, mas é óbvio que aí a conversa é um
pouco mais rigorosa. Também é importante a família falar de respeito ao outro,
de privacidade, de educação, de etiqueta na internet.
Os sinais de um agressor são crianças mais raivosas, mais
agressivas. Mas, geralmente, os pais sabem que a criança está praticando bullying quando
a queixa chega na família,
Mas é importante dizer que ambos os lados do bullying têm
trauma para o futuro.
Vítimas e praticantes de bullying, quando
essas vivências não são processadas de forma adequada, são crianças que, no
futuro, terão mais problemas de relacionamento, no trabalho, terão mais
tendência a adoecimento físico, mental, ao uso de remédios e de drogas também.