Música litúrgica e o encontro pessoal com Cristo
16 de outubro de 2024
Não há muito tempo a música era considerada, nos
documentos magisteriais, apenas como um elemento potenciador da piedade dos
fiéis. Neste momento, ensina-se que ela faz parte integrante e necessária da
liturgia solene. Ou seja, ela é também, por fazer parte da Liturgia, epifania
do Mistério celebrado. Como evoluiu até nós esta visão tendo em conta os
documentos do magistério?
Como se sabe o movimento litúrgico e outros fatores levaram
a uma evolução na conceção da Liturgia, a considera-la mais do que simples
ritualidade, atribuindo-lhe uma dimensão teológica. Antes do Vaticano II os
sacramentos eram considerados apenas como instrumentos da graça. Ou seja, o
importante eram os elementos para a validez dos mesmos. O resto era apenas
cerimónia litúrgica e tinha o objetivo de suscitar a devoção dos fiéis.
No motu próprio de Pio X, «Tra le solicitudine »,
logo no primeiro ponto ainda se diz: «A música sacra, como parte integrante
da Liturgia solene, participa do seu fim geral, que é a glória de Deus e a
santificação dos fiéis.» Ao ler estas palavras, poder-se-ia pensar que se
estava a abrir lugar para afirmar a sacramentalidade da música sacra pois, na
medida em que ela participa do fim da própria liturgia, poderia, portanto,
contribuir para manifestar o Mistério de Cristo. [2]
Porém, veja-se como prossegue o mesmo ponto:
«A música concorre para aumentar o decoro e esplendor das
sagradas cerimônias; e, assim como o seu ofício principal é revestir de
adequadas melodias o texto litúrgico proposto à consideração dos fiéis, assim o
seu fim próprio é acrescentar mais eficácia ao mesmo texto, a fim de que por
tal meio se excitem mais facilmente os fiéis à piedade e se preparem melhor
para receber os frutos da graça, próprios da celebração dos sagrados
mistérios.»
Ou seja, mais do que epifania de salvação ou do Mistério
Pascal, a música tem um «ofício»: dispor os fiéis para receber a graça
de Deus.
Na mesma linha segue Pio XI, na Bula Divini Cultus, de
20 de dezembro de 1928:
«É, portanto, muito importante que tudo o que é destinado
à beleza da liturgia seja regulado por leis e prescrições da Igreja, de modo
que as artes sirvam verdadeiramente, como é mister, quais nobres servas do
culto divino.»[3]
E este carácter de nobre serva irá permanecer ainda em 1947,
pois, Pio XII, na Mediator Dei, apresenta o gregoriano como uma música que
contribui para aumentar a fé e a piedade dos presentes. Nessa linha continua
Pio XII em 1955 na encíclica Musicae sacrae disciplina ao
afirmar que a música sacra:
«Ocupa lugar de primeira importância no próprio
desenvolvimento das cerimônias e dos ritos sagrados. Por isso, deve a Igreja,
com toda diligência; providenciar para remover da música sacra, justamente por
ser esta a serva da sagrada liturgia, tudo o que destoa do culto divino ou
impede os féis de elevarem sua mente a Deus.»[4]
A perspectiva no pré-concilio é a de que a música, mais do
que lugar de experiência do Mistério, dispõe para isso, excitando a devoção dos
fiéis.
Com a Sacrosanctum Concilium dá-se uma
mudança profunda:
«A tradição musical da Igreja é um tesouro de inestimável
valor, que excede todas as outras expressões de arte, sobretudo porque o canto
sagrado, intimamente unido com o texto, constitui parte necessária ou
integrante da Liturgia solene.»[5]
Estas últimas palavras são chave e, no contexto dos pontos 5
a 7 da mesma constituição, em que se dá o passo da tal visão da liturgia como
mera ritualidade para lugar de experiência pessoal do Mistério de Cristo, elas
irão adquirir especial força.
Porém, o ponto 112 continua logo a seguir sublinhando «a
função ministerial da música sacra no culto divino». Elena Massimi[6] afirma
mesmo, depois de estudar o iter redacional da constituição conciliar, que este
ponto talvez não tivesse a intenção de afirmar que a música litúrgica é,
efetivamente, epifania do Mistério como tem sido citado. Admite que este ponto
foi lido depois em ligação com os pontos iniciais da SC, mas considera que os
padres conciliares não estariam ainda firmes nesta visão e que, por isso, SC
vai ser um documento de transição para uma visão mais profunda e teológica da
liturgia e, dentro desta, da música sacra.
Com a carta apostólica Desiderio Desideravi do Papa
Francisco apresenta-se uma visão da liturgia que permite olhar para a música
litúrgica vendo-a como potenciadora desse encontro pessoal com o Mistério de
Cristo. Este carácter epifânico pode ser deduzido de pontos como os seguintes:
«A encarnação para além de ser o único acontecimento novo
que a história conhece, é também o método que a Santíssima Trindade escolheu
para nos abrir a via da comunhão. A fé cristã ou é encontro com Ele vivo, ou
não é.[7]
«A Liturgia garante-nos a possibilidade desse encontro.
Não nos basta ter uma vaga recordação da última Ceia: nós precisamos de estar
presentes nessa Ceia, de poder ouvir a sua voz, de comer o seu Corpo e beber o
seu Sangue: precisamos d’Ele. Na Eucaristia e em todos os sacramentos é-nos
garantida a possibilidade de encontrar o Senhor Jesus e de ser alcançados pela
potência da sua Páscoa.»[8]
Mas, este encontro como se dá?
« Esta implicação existencial acontece – em continuidade
e coerência com o método da encarnação – por via sacramental. A Liturgia é
feita de coisas que são exatamente o oposto de abstrações espirituais: pão,
vinho, azeite, água, perfume, fogo, cinzas, pedra, tecido, cores, corpo,
palavras, sons, silêncios, gestos, espaço, movimento, ação, ordem, tempo, luz.»[9]
Olhemos, então, para os sons. Eles ajudam a exprimir o
Mistério, a tocá-lo, a entrar em contacto com ele.
«A Liturgia não nos deixa sós na busca individual de um
suposto conhecimento do mistério de Deus, mas toma-nos pela mão, juntos, como
assembleia, para nos conduzir para dentro do mistério que a Palavra e os sinais
sacramentais nos revelam. E fá-lo, em coerência com o agir de Deus, seguindo a
via da encarnação, através da linguagem simbólica do corpo que se prolonga nas
coisas, no espaço e no tempo.»[10]
A liturgia, com tudo o que a integra, torna presente o
Mistério Pascal e permite-nos vivenciá-lo. E a música é, sem dúvida, um
elemento de especial importância.[11] Assim
o expressam Gianni Cavagnoli e Elena Massimi no editorial da revista litúrgica
dedicada aos sons da liturgia:
«Na liturgia não nos limitamos a cantar, ou a escutar
melodias; na liturgia somos imersos num verdadeiro e próprio ambiente sonoro: o
som dos passos, da água derramada, o tinir do turíbulo, o fruir do ar nos tubos
do órgão… Todo o universo sonoro que se cria contribui para imergir o fiel na
celebração, no mistério. E numa liturgia entendida em geral como rito, mesmo
aquilo que é aparentemente secundário, torna-se epifania do mistério».[12]
Pedro Boléo Tomé
[1] Artigo
inspirado em MASSIMI, E., La musica nella liturgia: epifania del
Mistero. Riflessioni alla lucce del “magistero recente”.
[2] Assinalamos
que não será qualquer música que poderá adquirir essa qualidade.
[3] «È
dunque molto importante che tutto ciò che è destinato alla bellezza della
liturgia sia regolato da leggi e prescrizioni della Chiesa, in modo che le arti
servano veramente, come è doveroso, quali nobili ancelle al culto divino»
[4] Pio
XII, Musica sacra e sacra liturgia n. 13
[5] SC
112
[6] MASSIMI,
E., La musica nella liturgia: epifania del Mistero. Riflessioni alla lucce del
“magistero recente”
[7] DD
10
[8] DD
11
[9] DD
42
[10] DD
19
[11] A
Igreja não deixa de cantar aos domingos, festas e solenidades porque sabe que,
sem a música, realidades como a alegria da Ressurreição, a união com a liturgia
celeste, a transformação do cosmos num canto de louvor à Trindade, etc., seriam
facilmente reduzidas a “ideias” ou “conteúdos mentais”, quando na realidade se
trata de realidades sobrenaturais, chamadas a implicar toda a pessoa, tanto na
sua corporalidade, como na sua dimensão espiritual. Isto é, a Igreja quer que
os seus filhos cantem a ação litúrgica não por capricho ou extravagância, mas
porque há aspetos do mistério de Deus que foram confiados ordinariamente à
mediação da experiência musical: REGO, J., Apontamentos de uma conferência
para sacerdotes dada em Roma (16:XII.2023)
[12] CAVAGNOLI.
G. e MASSIMI, E., Una liturgia di suoni, RIVISTA LITURGICA trimestrale
per la formazione liturgica, Quinta serie, anno CX, fascicolo 4,
ottobre–dicembre 2023.