Rodrigo
relata sofrimento ao ter acompanhado os últimos dias de vida de Carlos e conta
que procurou ajuda para lidar com sintomas como ansiedade e depressão (Crédito:
Getty
Images)
A crescente demanda por cuidadores de idosos em um Brasil
cada vez mais velho: 'Fui trocar lâmpada e fiquei'
Por Mônica Vasconcelos
Da BBC News Brasil em Londres
9 dezembro 2024
'Você vai demorar para voltar?'
Rodrigo conta como a relação com Carlos, além de se tornar
cada vez mais íntima, também ficava cada vez mais intensa e ganhava novos
contornos conforme o idoso requisitava cada vez mais sua presença.
“Às vezes, eu tinha de ir à farmácia, e ele falava, ‘você
não vai demorar não, né?’ Às vezes, eu levava ele e ele ficava dentro do carro,
pra ficar me olhando. Ele queria ficar próximo. E quando eu ia embora, ele
perguntava: ‘você vai demorar pra voltar?’”
“Mais especial foi nos últimos dias da vida dele. Deixa eu
dar uma respirada. (Pausa) Ele falava que me tinha como um
filho. É que ele teve só filhas mulheres. Quando ele estava internado, as
meninas (vendo que eu estava sofrendo), arrumaram enfermeiras para ficar com
ele. Eu não me sinto muito bem em hospital, e vendo a forma como ele estava, eu
sofria muito. Então eu só ia nas visitas. Eu chegava lá, ele sentia muita
falta. Ele falava, ‘por que você me abandonou?’”
“O dia que ficou mais marcado foi o dia que eu levei ele
para o hospital. Ele tava em casa, tava passando mal. Eu perguntei, ‘seu
Carlos, tá tudo bem? O que o senhor tá sentindo?’ Ele falou, ‘ah, minha vista
está diferente’. Eu falei, ‘a gente vai para o hospital’. Ele falou, ‘não, não
precisa. O filme está acabando’. ‘Mas que filme?’ 'O filme tá acabando. O filme
acabando, acaba tudo.' Foi onde começou", relata Rodrigo, em meio às
lágrimas.
"Ele foi pro hospital, ficou internado. Pouco depois,
veio a falecer."
Ao lembrar dos seus últimos momentos juntos, Rodrigo explica
emocionado que teve de procurar um médico para lidar com ansiedade e depressão.
É preciso pensar no envelhecimento precoce do profissional
cuidador, sobretudo quando a pessoa de quem ela está cuidando morre, diz o
gerontólogo Jorge Félix.
Ele vai além: “Isso deveria ser pensado inclusive em termos
da previdência social [do cuidador]”.
Félix compara o desgaste do cuidador ao de uma enfermeira, por
exemplo.
“A enfermeira tem um amplo preparo, inclusive psicológico,
para lidar com essas situações. Ela tem um treinamento para tratar de forma
humana, mas não ter um envolvimento”, diz o pesquisador.
Sem esse escudo psicológico, o luto do cuidador acelera seu
envelhecimento, diz Félix.
“É como se ele tivesse perdido a razão de viver. São
situações com as quais eles deveriam aprender a lidar no curso de formação.”
Formação profissional
Nesse sentido, uma formação profissional adequada seria
fundamental para a proteção e benefício tanto do cuidador quanto da pessoa
cuidada, segundo os especialistas.
Por iniciativa de ONGs como a Abraz (Associação Brasileira
de Alzheimer e Outras Demências), um curso técnico profissionalizante de
Cuidadores de Pessoas Idosas foi inserido no catálogo nacional do Ministério da
Educação.
No entanto, sem uma regulamentação da profissão e sem uma
padronização no tipo de formação necessária para o exercício da atividade, o
relato é de que a demanda por cursos desse tipo acaba sendo baixa.
O professor e pesquisador Daniel Groisman, da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), diz que a entidade oferecia um curso de qualificação
profissional (com menos horas do que o curso técnico) para cuidadores, mas hoje
opta por oferecer cursos de formação para formadores de cuidadores.
Ainda assim, uma pesquisa longitudinal da Fiocruz com
ex-alunas do curso de qualificação trouxe resultados bastante encorajadores,
comenta Groisman, coordenador do projeto Cuidando de Quem Cuida.
“Um primeiro resultado foi que o acesso à formação teve um
impacto positivo para a empregabilidade”, diz Groisman.
“Comparando o que as pessoas estavam fazendo na época em que
procuraram o curso e o que estavam fazendo quando foram entrevistadas, houve um
aumento significativo no número de pessoas atuando como cuidadoras e uma
diminuição no número de pessoas que estavam desempregadas.”
As ex-alunas também falaram da melhoria na qualidade do seu
trabalho como cuidadoras, prossegue Groisman.
“É um resultado importante, elas saberem trabalhar com
melhor qualidade tanto em relação às práticas do cuidado como também com uma
consciência para se protegerem de situações de sobrecarga de trabalho e
violações de direitos.”
O estudo também concluiu que as cuidadoras com formação são
mais aptas a prevenir acidentes domésticos com idosos, já que entendem como
criar um ambiente mais seguro para a pessoa idosa em casa.
Finalmente, lembra Groisman, em uma profissão que pode ser
tão solitária, as cuidadoras e cuidadores que fazem o curso podem encontrar
solidariedade no convívio com outros profissionais.
Com ou sem qualificação profissional, Rodrigo parece estar
certo de que cuidar é sua verdadeira vocação e conta como a profissão o
transformou.
"Eu trabalhava no condomínio [como vigia]. Você vê
muito ódio e você acaba mudando a sua personalidade. Um exemplo pra você: Eu ia
atender uma ocorrência. Chegava em uma casa, o vizinho tinha ligado na portaria
para reclamar do barulho. Você ia conversar, explicar a lei, a pessoa muitas
vezes te humilhava. 'Você não é nada, eu sou tal coisa.'
"Então você vai mudando a sua personalidade. Tem de ser
mais grosso, mais rígido. Mas quando eu vim trabalhar com eles, vi que é mais
amor. Voltei a ter um sentimento novamente. Percebi que aquele trabalho não era
bom pra mim, porque eu não sou uma pessoa daquele jeito. Eu sou uma pessoa
atenciosa, uma pessoa carinhosa. Foi muito bom para eu entender que estava na
área errada."
Semanas depois da entrevista à BBC News Brasil, Rodrigo
contou que foi desligado do trabalho por corte de custos e passou a trabalhar
como cuidador de outro idoso: "Mas não quero me apegar muito, porque a
gente sofre".
Profissão do futuro?
Em um Brasil que envelhece, uma atividade tão antiga pode
também ser uma profissão do futuro.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(Pnad), entre 2019 e 2023 houve um aumento de 15% no número de cuidadores
remunerados no Brasil. A pesquisa estima que eles somavam, em 2023, cerca de
840 mil.
Para compreender o tamanho do mercado em potencial, é
importante olhar para o cuidado não
remunerado feito no país hoje.
O número de familiares que se dedicavam a cuidados de
pessoas de 60 anos ou mais saltou de 3,7 milhões em 2016 para 5,1 milhões em
2019, segundo o IBGE.
São pessoas — na maioria, mulheres — que trabalham muitas
vezes na invisibilidade, sem remuneração, fazendo grandes sacrifícios pessoais
(por exemplo, abandonando suas profissões, colocando em risco sua saúde e sua
própria sobrevivência financeira na velhice), segundo especialistas.
Olhando para essa realidade, Groisman e Félix respondem que
cuidar já é uma profissão crítica para o Brasil do presente.
Se vai ser uma profissão do futuro, isso vai depender, em
grande parte, do governo brasileiro, diz Jorge Félix.
Ele cita o projeto de lei que estabelece a Política Nacional
de Cuidado, enviado pelo governo federal ao Congresso.
“Primeiro, o Congresso vai discutir essa política. E isso
vai formar a base para depois você definir e regulamentar a profissão de
cuidadora”, diz Félix.
“É a primeira vez que o Executivo tenta tomar uma iniciativa
sobre a questão do cuidado, principalmente, estabelecendo o direito ao
cuidado.”
Félix considera que se trata de um avanço muito grande, mas
diz que, por enquanto, o que existe são promessas.
“Durante a campanha presidencial, Lula faz essa promessa de
criar um serviço de cuidadora de idosos domiciliar. No meu entendimento, seria
um serviço semelhante ao dos agentes comunitários de saúde que já existe no
SUS", diz o pesquisador.
"Então, você teria uma pessoa do serviço público que
vai à sua casa, te dá banho, ajuda sua família a fazer a gestão dos
medicamentos, verifica se a pessoa está bem cuidada com visitas periódicas. São
promessas, não é? Promessas.”
Félix acompanha atento os desdobramentos no Congresso. Ele
diz que “a profissão de cuidador pode ser uma profissão do futuro caso o Estado
ofereça, abrace esse serviço, como ocorre em alguns países ricos”.
Mas, se a promessa não for cumprida, o cenário pintado é
preocupante, diz o especialista.
Se o custo do cuidado recair somente sobre a família, o
envelhecimento populacional trará um aumento na demanda, mas essas famílias não
terão como pagar, diz.
“Somente 20% da população brasileira paga por esse serviço”,
diz.
“Se continuar assim, você continua a ter muitas pessoas sem
cuidado. Que ficam sozinhas em casa, e morrem em casa sem ninguém saber.”
Procurado pela BBC News Brasil em outubro, o Ministério do
Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) não
ofereceu previsão para a conclusão da tramitação da Política Nacional de
Cuidado, mas informou que além de avançar na garantia do direito ao cuidado, a
política deve “diminuir a sobrecarga de trabalho de cuidados que hoje recai
sobre as famílias e dentro delas sobre as mulheres”.
O ministério disse ainda reconhecer a importância da
regulamentação da profissão de cuidador e cuidadora.
Enquanto ela é debatida no Legislativo, a pasta disse
trabalhar para “atender às demandas das(os) profissionais que atuam neste
setor, tais como oferta de formação profissional, elevação de escolaridade da
categoria, promoção de trabalho decente (acesso a direitos trabalhistas,
fiscalização do trabalho, adequação às normas de segurança e saúde), entre
outras”.
Em 2019, o Congresso Nacional manteve veto do então
presidente Jair Bolsonaro a um projeto de lei que regulamentava a profissão de
cuidador. Na ocasião, o governo justificou o veto dizendo que o texto criava
regulamentações “com a imposição de requisitos e condicionantes, ofendendo o
direito fundamental de livre exercício profissional”.
Na resposta à BBC Brasil, ao mencionar esse veto, o
ministério disse que ele “indica que os termos da regulamentação ainda estão
sendo debatidos e disputados no âmbito do legislativo nacional”.
Também em resposta à BBC News Brasil, o Ministério da Saúde
informou que, além do atendimento oferecido pelos agentes comunitários de saúde
(mencionados por Félix), a pasta oferece “atendimento multiprofissional e
domiciliar por meio das equipes de Estratégia de Saúde da Família, voltado para
demandas de saúde de rotina, especialmente para idosos”.
O Ministério da Saúde não mencionou quantas pessoas recebem
atendimento por meio desse serviço.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckg0l28v8d3o