São GREGÓRIO DE NISSA |
(Aprox. 330-395)
Sobre a Vida de Moisés
Tradução segundo a Patrologia Grega de Migne
com base na versão de D. Lucas F. Mateo
História de Moisés
Capítulo 11
Como mais uma vez se originasse no povo uma rebelião para conseguir o poder, e alguns tentassem pela força que fosse transferido para eles o sacerdócio, ele suplicou uma vez mais a Deus pelos que pecavam, porem o rigor do juízo divino foi mais forte que a compaixão de Moisés por sua gente. A terra, que por vontade divina se abrira como uma boca, fechou-se novamente sobre si mesma, tragando totalmente todos os que se opunham a autoridade de Moisés; aqueles que se haviam envolvido em intrigas para alcançar o sacerdócio, devorados pelo fogo em número próximo de duzentos e cinqüenta, com sua desgraça ensinaram sensatez ao povo (Nm 16, 1-35). Para que os homens se persuadissem mais de que a graça do sacerdócio é concedida por Deus aos que são dignos, Moisés fez com que os homens principais de cada tribo trouxessem bastões, marcados cada um com o sinal de seu dono. Entre estes se encontrava o do sacerdote Aarão. Tendo colocado os bastões diante do santuário, neles mostrou ao povo o desígnio de Deus no que diz respeito ao sacerdócio: dentre todos, somente o báculo de Aarão floresceu e produziu fruto do lenho, - o fruto era uma noz -, e o levou ao amadurecimento (Nm 17, 16-24). Mesmo para os que não criam pareceu um enorme prodígio que o que estava seco, sem casca e sem raiz, se tornasse fértil de repente, e que realizasse o que realizam as plantas com raízes, fazendo, o poder divino, para o lenho as vezes da terra, córtex, umidade, raiz e tempo. Depois disto Moisés, guiando o exército entre povos estrangeiros que se opunham à sua passagem, promete com juramento que o povo não atravessaria suas lavouras nem seus vinhedos, mas que seguiria o caminho real, sem desviar-se nem para a direita nem para a esquerda. Como nem assim se aquietassem os inimigos, vencendo seu adversário em combate, faz-se dono do caminho (Nm 20, 17). Então certo Balac, que dominava sobre o povo mais importante, -madianitas era o nome desse povo-, compadecido da sorte dos vencidos e imaginando que padeceria as mesmas coisas por parte dos israelitas, não leva em sua ajuda nenhum contingente de armas ou de pessoas, mas a arte da magia através de certo Balaam, o qual tinha fama de ser versado nestas coisas e, segundo a convicção daqueles que o haviam procurado, tinha certo poder nesta atividade. Sua arte era a da adivinhação, porem com a ajuda dos demônios era temível, fazendo cair males incuráveis sobre os homens com poder mágico (Nm 22, 2-8). Este, enquanto segue aos que o conduzem ao rei do povo, conhece pela voz da jumenta que o caminho não lhe seria favorável. Depois conhecendo por uma visão o que devia fazer, descobriu que sua magia era demasiado débil para causar dano àqueles que estavam acompanhados por Deus na luta. Balaam possuído pela inspiração divina em lugar da energia dos demônios, disse palavras tais que claramente são uma profecia das melhores coisas que lhes sucederia mais adiante aos israelitas. Ao ser impedido de utilizar sua arte para o mal, tomando então consciência do poder divino, afastou-se da adivinhação e se fez intérprete da vontade divina (Nm 22, 22-24). Depois disto, os estrangeiros foram exterminados pelo povo em um combate contra eles; este por sua vez resultou vencido pela paixão da incontinência pelas cativas. Finéias atravessou com uma só lança aos que estavam entrelaçados na ignomínia; então teve descanso a cólera de Deus contra aqueles que se haviam deixado arrastar às uniões ilícitas (Nm 25, 1-9). Finalmente, o Legislador, subindo a um monte e contemplando de longe a terra que estava preparada para Israel segundo a promessa feita por Deus aos pais, abandonou a vida humana sem haver deixado sobre a terra nenhum sinal, nem uma recordação de seu trânsito com algum monumento funerário. O tempo não havia maltratado sua formosura, nem havia obscurecido o fulgor de seus olhos, nem havia debilitado a graça resplandecente de seu rosto (Dt 34,1-7), mas permaneceu sempre idêntico a si mesmo e, desta forma, conservou, mesmo na maturidade, a imutabilidade na beleza. Expus para ti em grandes traços quanto aprendemos sobre a história do homem em seu sentido literal, ainda que também tenhamos alargado necessariamente o discurso naquelas coisas em que de algum modo havia razão para isso. Talvez já seja tempo de aplicar a vida que acabamos de recordar ao objetivo a que nos propusemos em nosso discurso com o fim de obter alguma utilidade para a vida virtuosa. Retomemos pois o começo do relato desta vida.
Capítulo 12
Assim pois, não pensemos, por nos ater à letra da narração, que Deus é a causa dos sofrimentos dos que os mereceram, mas que cada um é autor de suas próprias desditas, ao preparar para si, com uma escolha adequada um cúmulo de dores, como diz o Apóstolo a um homem desta classe: Pela dureza e impenitência de teu coração vais entesourando contra ti ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus, o qual dará a cada um segundo suas obras (Rm 2, 5-6). De fato, se por um excesso na comida gera-se nos intestinos um humor bilioso e daninho, e o médico o expulsa provocando o vômito com sua técnica, não se atribui a ele - senão à desordem na comida - a causa de introduzir o humor nocivo nos corpos: a ciência médica só o fez visível. Da mesma forma, quando se diz que provem de Deus a dolorosa retribuição aos que usaram perversamente sua liberdade, é bom reconhecer que estes padecimentos têm sua origem e sua causa em nós. Para quem vive sem pecado não existem as trevas, nem os vermes, nem a geena, nem o fogo (Mc 9, 43), nem nenhum dos temíveis nomes e realidades. A narração diz também que os hebreus não padeceram as pragas dos egípcios. Se pois em um mesmo lugar há mal para um e não para outro, segue-se que a diferença entre um e outro se encontra na diversidade da escolha, e é necessário concluir, portanto, que nenhum mal pode ter consistência fora de nossa livre decisão.
Capítulo 13
Avancemos com a continuação do texto, tendo bem presente o que já explicamos: que o mesmo Moisés ou aquele que a sua imitação se eleva na virtude, depois de haver fortalecido sua alma com uma prolongada vida elevada e reta, e com a iluminação recebida do alto, considera como uma injustiça de sua parte não guiar seus compatriotas a uma vida livre. Moisés saindo a seu encontro infunde-lhes um desejo mais forte de liberdade pondo diante deles a gravidade dos padecimentos. A quando está perto de libertar seu povo do mal, traz a morte a todo primogênito egípcio (Ex 12, 29), indicando-nos deste modo que é necessário destruir o mal em seu primeiro broto, pois do contrário é impossível escapar da vida egípcia. Parece-me importante não deixar passar este pensamento sem refletir sobre ele. Pois se alguém considerar só o sentido literal, como poderá manter uma interpretação digna de Deus nos acontecimentos narrados? É injusto o egípcio e em seu lugar é castigado seu filho recém nascido que por sua tenra idade não pode distinguir entre o bem e o mal. Sua vida é alheia à paixão malvada, pois a infância não dá lugar à paixão, nem estabelece diferença entre a direita e a esquerda; unicamente ergue os olhos ao peito de sua nutriz, para expressar sua dor só dispões de suas lágrimas e, se consegue o que deseja sua natureza, mostra sua alegria com um sorriso. Onde está a justiça, se este cumpre o castigo pela maldade paterna? Onde a piedade? Onde Ezequiel clamando que a alma que peca, esta morrerá e não será responsável o filho, mas o pai (Ez 18, 20)?