O outro lado da história (Opus Dei)
O outro lado da história: morte e ressurreição
Todo ser humano deseja a plenitude de vida. Qual é a relação
deste anseio com a morte e ressurreição de Cristo? A morte é o único limite
para o progresso? Por que a ressurreição de Jesus é decisiva? Em que consiste
“o novo céu e a nova terra”?
28/05/2019
Provavelmente já assistimos a um filme, lemos um livro ou
jogamos algum videogame em que aparece oelixir da longa vida. Com
esta expressão, alcunhada faz séculos, tratava-se de descrever a procura dos
alquimistas por um medicamento também chamado “panaceia”, que permitisse ao ser
humano viver para sempre. Na nossa época existe uma corrente de pensamento –
chamada Trans-humanismo – que constitui uma versão atualizada desta pretensão,
e que se caracteriza pelo seguimento de três grandes objetivos para a aparição
de uma humanidade perfeita: a super longevidade, o super
conhecimento e o super bem-estar; em outras palavras: a
procura de uma vida em plenitude.
Progresso versus morte: limite ou ponto de partida?
Porque, depois de tantos séculos de progresso, continuamos
procurando fins não atingidos? É evidente que o homem é um ser insatisfeito. É
um ser que, embora consiga um nível de vida e de felicidade que poderia ser
considerado satisfatório, nunca se sente totalmente satisfeito: quer conhecer
mais, viver cada vez melhor e para sempre. Com o desenvolvimento científico e
tecnológico, os conhecimentos se ampliaram notavelmente, e também a capacidade
de evitar a dor ou de combatê-la. No entanto, mais cedo ou mais tarde, a
existência terrena acaba encontrando um obstáculo que até agora nenhum ser
humano conseguiu ultrapassar: a morte.
JESUS CRISTO NÃO SÓ SUPEROU A MORTE COMO LIMITE, COMO
NOS CONVIDA A PARTICIPAR DE SUA VITÓRIA
A morte parece algo profundamente injusto, que nunca deveria
acontecer. E, no entanto, se de algo temos certeza nesta vida, é que um dia
morreremos. Nosso ser está aberto a uma perfeição que fica truncada pela morte.
Por isso, os povos de todos os tempos e culturas desenvolveram modos de lidar
com aquilo que transcende esta vida, desdobrando o sentido religioso que está
ancorado na natureza humana. As representações do Além são variadas no panorama
religioso da humanidade e dão testemunho desse desejo humano de infinito; ao
mesmo tempo, nenhuma delas consegue demonstrar que é a única realmente
verdadeira.
Neste vasto horizonte, o cristianismo chega com uma força
inusitada: afirma que houve um homem que superou a morte como limite; que,
vencendo a morte, obteve uma vida que dura para sempre. Esse homem é Jesus
Cristo. Mas além disso afirma que Jesus prometeu aos que viverem com Ele e
seguirem o seu exemplo, poder participar dessa nova existência que
vence a morte.
Perante a morte de uma pessoa amada, com frequência
escutamos uma frase como: “a sua desaparição foi uma grande perda”. A morte de
um ser humano é injusta, pois cada um é um exemplar único, e, portanto, a sua
desaparição do mundo supõe um autêntico empobrecimento. Se isto é assim para
nós, podemos dizer que a morte de Cristo foi o acontecimento mais injusto da
história, pois a sua vida, como nos chegou através dos testemunhos da época,
tem uma exemplaridade fora do comum, que foi reconhecida inclusive pelos que
têm uma opinião negativa sobre o cristianismo.
Voltar às raízes
Algumas obras literárias descrevem esta busca humana como a
tentativa de voltar a um paraíso perdido, como sugere o título do
famoso livro de John Milton. Com isso fazem referência a diversas tradições que
falam de uma época inicial paradisíaca da humanidade, que foi quebrada por um
acontecimento que fez o homem perder a sua imortalidade e a sua bondade. A
história de alguns personagens da mitologia grega, como Aquiles, insinua que o
preço que o homem deve pagar para ser ele mesmo e não um ente sem
características próprias no mundo divino é a aceitação da própria mortalidade.
Por outro lado, no pensamento ilustrado é frequente encontrar a ideia de que o
ser humano, para poder ser ele mesmo, precisa emancipar-se da sua origem, da
sua dependência de um Deus ou de um contexto familiar que até então o protegeu.
Subsistir por si próprio significa perder o medo de encarar a morte. As
promessas da vida após a morte seriam, pois, uma volta às origens felizes.
Lembremos que alguns clássicos literários de épocas muito diversas, desde
a Odisseia até O Senhor dos anéis, se propõem como
a volta do herói à casa.
Falou-se da busca de uma vida duradoura, de um bem-estar e
de um conhecimento supremo. Pois bem, na realidade, a fé cristã nos diz que era
exatamente isso o que o ser humano tinha nas suas origens remotas, quando foi
criado por Deus em estado de inocência, que a doutrina da Igreja chama de
“justiça original”[1]:
além da amizade com Deus, o homem havia recebido os dons da integridade,
conhecimento, impassibilidade e imortalidade. Foi o pecado, a desobediência a
Deus (cfr. Gn 3, 6), o que provocou a expulsão do paraíso, e,
por conseguinte, a perda do acesso à árvore da vida (cfr. Gn 3,
22-24). A Bíblia especifica a seguir que a história primordial não termina
assim, de modo trágico, mas o próprio Deus cuida dos humanos cobrindo a sua
nudez com roupas improvisadas (Gn 3,21), e prometendo-lhes um
futuro redentor (cfr. Gn 3,15). Em efeito, Jesus Cristo, que
se apresenta como “o último Adão” (1 Cor 15,45), novo início
da humanidade, permanecendo ao mesmo tempo na sua condição divina, toma sobre
si a condição humana (cfr. Flp 2,5-11), com esses efeitos de mortalidade,
sofrimento e estar exporto à tentação, e realiza na sua vida o projeto de Deus,
em plena obediência ao Pai até a entrega da sua própria vida. E graças a esse
ato supremo de amor, vence a morte com a sua ressurreição, reabrindo as portas
do paraíso aos homens, que agora podem ter acesso de novo à árvore da vida: os
sacramentos, cuja fonte e cume é o alimento eucarístico[2].
Nele, de alguma forma, o Céu de Deus, o Paraíso, se une à terra que habitamos,
enquanto esperamos a sua prometida manifestação gloriosa no fim dos tempos[3].
A Ressurreição: o mistério de Deus no mundo
A fé cristã fala, portanto, de um além que
se torna presente em nosso aquém, de um Céu que, sendo promessa de
algo completamente novo, que não pertence às categorias espaço-temporais do
nosso mundo, e que ao mesmo tempo é algo que corresponde a um desejo
profundamente enraizado no nosso ser. É verdade que Jesus, depois da sua ressurreição,
ascendeu aos Céus, de onde voltará; esse mesmo Céu que acolheu Maria, que foi
concebida sem pecado e portanto participa de modo eminente do mistério do seu
Filho; porém é também certo, que esse Céu na verdade é o mistério de Deus que,
ao mesmo tempo que é transcendente a este mundo, está completamente dentro
dele, de modo que, paradoxalmente, agora Jesus se encontra mais perto de nós do
que quando percorria os caminhos da Palestina[4].
O CÉU É O MISTÉRIO DE DEUS: AO MESMO TEMPO QUE É
TRANSCENDENTE A ESTE MUNDO, ESTÁ COMPLETAMENTE DENTRO DELE
Com a sua ressurreição e a sua promessa, Jesus introduziu no
mundo da nossa experiência, muitas vezes negativa por estar marcada pelas
consequências do pecado nas nossas vidas (ignorância, dor, morte, etc.), uma
nova esperança, real, pois a vida e a ressurreição de Jesus ocorreram na nossa
história e, ao mesmo tempo, de algum modo a superam, porque a abrem ao que está
além dela, do outro lado da história. Essa esperança é convincente porque Jesus
deu a sua vida, e não existe nada mais digno de credibilidade neste mundo do
que o exemplo, que ao ser de santidade – isto é, de caridade – é simplesmente
incontestável. “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida por seus
amigos” (Jo 15,13). Por isso, o martírio, desde o início do
cristianismo até hoje, constitui a maior demonstração da credibilidade e
veracidade de uma fé pela qual uma pessoa é capaz de dar a vida.
Deste modo, entende-se que a vida eterna prometida por
Jesus, por um lado já começou neste mundo para quem crê e, ao mesmo tempo,
receberá uma plenitude transfiguradora que ainda não somos capazes de sonhar.
“O que Deus preparou para os que o amam é algo que os olhos jamais viram, nem
os ouvidos ouviram, nem coração algum jamais pressentiu” (1 Cor,2,9).
Se a imaginarmos com as categorias deste mundo, poderíamos supor um tédio por
uma vida que consistiria em uma “sucessão contínua de dias do calendário”[5].
Mas não se trata de uma cópia desta vida, mas, acima de tudo, de um dom
surpreendente, pelo qual vale a pena gastar a vida, pois amamos e confiamos em
quem diz que nos tornará felizes. “Muito bem, servo bom e fiel, [...] Vem
participar da alegria do teu senhor” (Mt 25,21-23). Quando duas
pessoas formam um projeto comum de vida, uma diz a outra que a fará feliz, não
porque pense que a outra pessoa será um meio para alcançar a felicidade, mas
porque ocupar-se da felicidade do outro a fará feliz. Certamente, Deus já é
feliz como comunhão trinitária de Pessoas; mas, ao mesmo tempo, quer fazer-nos
participar da sua felicidade. E esta existência terrena, vivida por amor, é uma
antecipação desta felicidade. Por isso, santo Agostinho dizia que “amando ao
próximo limpas o olho para ver a Deus”[6].
Um novo Céu e uma nova Terra
Para poder ver Deus temos que continuar sendo criaturas de
alma e corpo, e, portanto, é necessária uma ressurreição final, que consiste em
que, sendo Deus Criador de tudo, a matéria, o cosmos e os nossos corpos,
transfigurados, também possam participar da glória divina, como de fato já
participa a humanidade de Jesus Cristo, que existe para sempre em Deus.
Trata-se de algo muito importante para uma correta interpretação das
implicações do cristianismo na sociedade, na história e na cultura: o “novo céu
e a nova terra” (Ap 21,1) não serão algo completamente diferente, mas, de
alguma maneira, o empenho para construir um mundo melhor acompanhará o homem na
eternidade.
ENTENDE-SE QUE A VIDA ETERNA PROMETIDA POR JESUS, POR
UM LADO JÁ COMEÇOU NESTE MUNDO PARA QUEM CRÊ
Portanto o homem é pai de si mesmo[7],
pois as suas decisões o configuram, e isso quer dizer que constrói a sua
eternidade por meio da sua atuação neste mundo, pois as suas ações configuram a
sua pessoa. Por isso, ressuscitará não somente um corpo em sentido puramente
material, mas todo o seu ser com a bagagem de toda a sua história[8].
Por isso é tão certeiro o convite a “viver cada instante com vibração de
eternidade”[9].
Nenhuma doutrina suscitou tantas ironias dos pagãos nos
primeiros séculos como a da ressurreição. Recordamos o que disseram a São
Paulo: “A respeito disso te ouviremos ainda uma outra vez”; “o teu muito saber
tira-te o juízo” (At 17,32; 26,24). No entanto, o dualismo entre matéria e
espírito, que caracterizava a cosmovisão grega, não oferecia perspectivas de
salvação da dimensão material, considerada como fonte do mal. As teorias
antigas e novas, que prometem uma reencarnação também não satisfazem, pois embora
pareçam valorizar a necessidade de a matéria estar presente no destino do
homem, não parecem respeitar a verdadeira identidade do homem na união
indissolúvel de corpo e alma.
Olhando para Cristo podemos compreender que a promessa da
ressurreição é razoável, embora não esteja na mão do Homem alcançá-la, pois se
trata de puro dom. Por isso, o cristianismo é uma proposta de sentido que, sem
decifrar totalmente nesta vida os enigmas que rodeiam a existência, oferece uma
esperança razoável de uma vida inextinguível, pela qual vale a pena seguir
Jesus Cristo e dar a vida por Ele.
Santiago Sanz
Leituras recomendadas:
Bento XVI, Enc., Spe salvi, 30-XI-2007.
R. Guardini, El tránsito a la eternidad, PPC,
Madrid 2003.
J. Ratzinger, Escatologia, La muerte y la vida eterna,
Herder, Barcelona 1992, p.150.
P. O’Callaghan – J.J. Alviar, Breve y sencillo curso de escatología, em www.collationes.org.
Roma 2013.
[1] Cfr.
São João Paulo II. O pecado do homem e o estado de justiça original, Audiência
geral, 3-IX-1986.
[2] Cfr. J.
Ratzinger, escatologia, La muerte y la vida eterna, Herder, Barcelona 1992,
p.150.
[3] Cfr.
S. Hahn, O Banquete do Cordeiro, Cleofas.
[4] Cfr.
J. Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré - da Entrada em Jerusalém até a
Ressurreição, Planeta.
[5] Bento
XVI, Enc. Spe salvi, 30-XI-2007, n. 12.
[6] Santo
Agostinho, In Evangelium Ioannis Tractatus, 17, 8.
[7] Cfr.
São Gregório de Nisa, De vita Moysis, 2,3.
[8] Cfr.
R. Guardini, El tránsito a la eternidad, PPC, Madrid 2003.
[9] São
Josemaria, Amigos de Deus, n. 239.
Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/morte-vida-ressurreicao/